Por que a democracia brasileira ficou doente
Pesquisa indica que quase a metade dos brasileiros apoiariam um regime militar para combater a corrupção, enquanto os corruptos - dentro e fora do PT - atacam a Lava Jato
Segundo pesquisa mais que preocupante, conduzida pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e publicada nesta segunda-feira (7/05) pelo jornal Valor Econômico, 53% dos brasileiros defendem a implantação de um regime militar “quando há muito crime”, e 47,8% pensam do mesmo jeito “quando há muita corrupção”.
No caso da criminalidade, a desconfiança recai sobre a eficiência da máquina de segurança pública. Mas, no caso da corrupção, a percentagem reflete um desapego à política e ao Judiciário.
Separemos esses dois tipos de descrença para enxergar melhor o desencanto com os mecanismos de combate aos corruptos, que teria nos militares, segundo a pesquisa, agentes de maior competência.
O Brasil atravessou a experiência traumatizante de um regime controlado pelas Forças Armadas (1964-1985), em que a segurança nacional foi um valor que se sobrepunha ao da democracia.
A Constituição de 1988 foi um mecanismo de dissuasão ao retorno do modelo ditatorial.
Agora, pelo que se vê, a democracia –com suas imensas e fabulosas vantagens –provoca um desencanto em parte dos brasileiros.
E a ideia de apelar para as Forças Armadas deixou de ser o projeto de uma folclórica minoria de extremistas de direita.
O Datafolha monitorou pela última vez esse sentimento em fevereiro de 2014. Na época, 62% dos entrevistados concordavam que a democracia representativa era a melhor forma de governo.
Esse retrato da opinião pública, feito há quatro anos, demonstrava uma recuperação notável da reputação do ideário democrático.
No início de 1992, a democracia era apoiada por uma maioria relativa bem menor (42%), mas na época os brasileiros tinham a visão da política turvada pelo fracasso do então presidente Collor de acabar com a inflação, e ainda pelas primeiras informações de que o governo federal estava tomado por um grupo de crime organizado.
COM A CORRUPÇÃO, O DESENCANTO
A pergunta fundamental está nos fatores que levaram ao desapontamento atual, quando (segundo sondagem Datafolha do ano passado) 40% dos brasileiros dizem “confiar muito” nas Forças Armadas e 43% dizem “confiar um pouco”.
A percepção da corrupção na política não machuca apenas a reputação daqueles que foram eleitos. Machuca o conjunto de instituições da democracia representativa.
Paradoxalmente, a percepção em torno do tamanho da corrupção foi desenhada justamente pelo mecanismo mais eficiente que o país até hoje criou para combate-la: a operação Lava Jato.
O problema, no entanto, é que a Lava Jato não é consensual dentro da sociedade. Os objetivos criminais da operação, por assim dizer, foram e são “ecumênicos”.
Atingem eleitos de todas as correntes políticas, desde que a equipe de Curitiba descobriu que o PP fora beneficiado pelo superfaturamento de contratos, assinados na Petrobras por um diretor que aquele partido indicou.
Mas a Lava Jato despertou dois tipos muito claros de inimigos.
De um lado, eles estão numa coligação politicamente mais conservadora, que já pretendeu “estancar a sangria”, segundo os termos usados pelo senador Romero Jucá (PMDB-RR), em gravação que lhe custou o cargo de ministro do Planejamento nas primeiras semanas do governo Temer.
De outro lado, a Lava Jato é sistematicamente atacada pelo PT, que a enxerga como parte de uma conspiração para levar à cadeia quadros do partido e, sobretudo, o ex-presidente Lula.
E como pano de fundo, a serviço dos dois grupos, estão as empreiteiras que sujaram as mãos na Eletrobrás, na Caixa, na Petrobras e nos demais tentáculos empresariais e financeiros do Estado.
A ARMA DA IDEOLOGIA
O poder de corrupção das grandes empresas prestadoras de serviço que estiveram em evidência (como a Odebrecht ou a OAS) foi aparentemente neutralizado.
E essas empresas não têm poder de fogo para comandar campanhas contra o Ministério Público Federal de Curitiba e contra o juiz Sérgio Moro.
Não é o que ocorre com os políticos do bloco liberal e conservador (MDB, PSDB, PP e outras siglas), interessados em colocar entraves às apurações que os levam aos bancos dos réus e à prisão.
Mas esses senhores, que formam basicamente o núcleo situado ao redor do presidente Michel Temer, não trombeteiam uma ideologia da impunidade que lhes interessa.
Eles atuam mais discretamente no Congresso e no Executivo para cortarem as asas de Curitiba.
E contam com a cumplicidade de uma parcela do próprio Supremo Tribunal Federal, interessada em abrir as portas das prisões a todos os condenados em segunda instância que ainda não foram julgados por tribunais superiores.
Ao lado desse bloco, mas umbilicalmente ligado a ele, está o Partido dos Trabalhadores, cuja atuação se diferencia pelo fato de formular e difundir teorias conspiratórias sobre a atuação do Judiciário.
UMA CAMPANHA IMPIEDOSA DO PT
A campanha petista é barulhenta e impiedosa. Foi bater às portas da ONU e inventou nas redes sociais que Lula é agora visto pelo Tribunal Penal Internacional, de Haia, como “preso político”.
Agita o lobby internacional das esquerdas em defesa da tese de que “as elites” puniram Lula sem provas criminais, mas “apenas pelo fato de ele ter beneficiado os mais pobres”.
O perigo dessa falácia, para efeitos dentro do Brasil, está no descrédito da própria ideia de democracia. A prioridade é soltar Lula e defender o PT. O resto é agora irrelevante.
É o que leva um deputado federal petista Wadih Damous (RJ) e propor o fechamento do STF, porque os 11 ministros não deram um habeas corpus preventivo que teria evitado a prisão de Lula.
É um nítido cenário de democracia disfuncional, a partir do qual a opção pelas Forças Armadas é pensada – e não pelos petistas, mas sobretudo por causa deles - seriamente como alternativa.
A disfuncionalidade tem outra faceta importante. A vida democrática é alimentada pela livre discussão de propostas e ideias de políticas públicas.
Os liberais e conservadores precisam de uma esquerda articulada, ao menos para produzirem programas liberais ou conservadores que possam se opor ao que ela propõe.
Pois agora, pela primeira vez desde 1989, a disputa presidencial é desencadeada sem que o PT diga qual é seu programa.
A ideia monotemática dos petistas é soltar Lula. Nada mais discutem sobre o tamanho do Estado, emprego ou equilíbrio fiscal.
Uma das pernas da democracia ficou mais curta, e com isso ela vem manquitolando no atual trajeto da história política brasileira.
É um cenário que gera o desapontamento. A solução verde-oliva, mesmo sem estar concretamente no horizonte, passa então a ser evocada pelos entrevistados da pesquisa da UFMG, publicada nesta segunda-feira.
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