Um pouquinho só
Se há uma lição que se pode tirar da História do Brasil é a de que todas as vezes em que surgiu uma crise militar o problema estava muito além dos militares
Diante da insistência obsessiva do Brasil em desconsiderar lições óbvias de seu passado não tão passado assim, é oportuno voltarmos a essa matéria do início do ano, para, quem sabe, enxergarmos o labirinto em que nos encontramos:
As palavras do Comandante do Exército são do interesse de todos os brasileiros e merecem a mais cuidadosa reflexão. Cabe perguntar, portanto, neste momento em que é gestada uma crise militar: a quem interessa?
Para responder a essa pergunta é melhor entender a situação do que apontar para pessoas. E o que está a se desenhar é simplesmente aterrador: rabisca-se em todas as cores e traços a volta do estado de coisas que nos levou à maior crise de nossa História.
Isso é facilmente constatado nos acontecimentos dos últimos dias, tanto os esperados de uma agenda institucional, como outros decorridos de situações inesperadas.
A consolidação do poder de uma camarilha corrupta no Senado, o “truco” na relatoria da Lava-Jato e a recriação de ministérios de oportunidade causaram um grande e indisfarçável mal estar no País.
Para impedir um novo surto de indignação, os operadores do mais do mesmo tiveram que agir rápido e em ampla frente.
Em primeiro lugar, acionaram a grande imprensa, que há muito deixou de ser independente, incumbindo-a de edulcorar a cena, congratulando-se com os reempoderados e autogratulando-se por sua suposta participação nas mudanças da situação politica do País que, se dependesse dela, não teriam acontecido.
Com o mais cínico oportunismo, aproveitaram o falecimento da ex-primeira dama para fazer das condolências ao ex-presidente atos de politicagem explícita, demonstrando o inacreditável alinhamento de cúpula do PMDB, PSDB e PT, na verdade uma exibição de força do núcleo politico que vem dando as cartas há mais de vinte anos no País.
Compondo o cenário, em 48 horas, fizeram de Luiz Edson Fachin o único ministro do STF disponível, capaz, competente, isento, honesto, respeitável, probo e sabe-se mais lá o quê, para relatar os processos da Operação Lava-Jato remetidos àquela alta corte.
E, corruptores confessos, foram jantar com o presidente da República clamando por um “nome político” no STF em substituição a Teori Zavascki. Em algum lugar do futuro, a cena poderia estar retratada no quadro da Ceia Maldita, só com Judas de muitos dinheiros à mesa.
É um engano pensar que a Operação Lava-Jato, a deposição constitucional de Dilma Roussef e a defenestração do PT do Planalto afastariam, por elas mesmas, a corrupção e o autoritarismo no Brasil.
O bom senso e o realismo indicam que esses são apenas os passos necessários e preliminares do extenso e profundo processo de erradicação da má política na vida pública brasileira.
Mas é um engano muito maior acreditar que essa depuração da política se dará pelas mãos dos seus atuais operadores, beneficiários descarados da corrupção, em boa parte impunes, que se arrogam ao direito de dizer ao País o que vai e o que não vai acontecer.
Como se sabe, essa correção de rumos na política nacional só advirá de uma permanente mobilização contra a corrupção e de uma fundada resistência contra o arbítrio, por parte da sociedade brasileira.
Se o País se dobrar ao que já se tentou e que agora ensaia voltar solerte, estamos perdidos.
Já sabemos, desde os desastres dos planos econômicos dos anos 80, passando pelas oportunidades perdidas do Plano Real, que competência técnico-econômica sem política que atenda ao verdadeiro interesse nacional redunda em fracasso.
Nenhum governo no Brasil, nem este nem qualquer outro, tem mais o direito de pretextar crise econômica para ser politicamente desonesto. Qualquer êxito dessa fórmula venenosa vai levar aos resultados efêmeros e enganosos das últimas décadas.
E como entram os militares nisso tudo? Como salvadores da Pátria? Protagonistas de uma intervenção sem pé nem cabeça, de origens e propósitos para lá de obscuros? Não, absolutamente não.
Os militares entram nesse imbróglio pelo simples fato de serem sociedade. Tanto, institucionalmente, por a ela servirem, como individualmente, membros que são da sociedade civil.
Constituem um grupo sócio-profissional majoritariamente de classe média bem identificado por valores conservadores, que cumpriu um papel discreto, mas relevante, nas mudanças que aconteceram no Brasil em 2016.
Institucionalmente, foram desrespeitados pelos antigos detentores do poder e engoliram os abusos que se praticaram na administração pública em geral, alguns dos quais os atingiram diretamente.
Mas se posicionaram contra a tentativa de golpe esboçada por Dilma e seu patético “esquema militar” e a de Lula em espalhar a violência nas ruas das cidades brasileiras.
Individualmente, de todos os postos e graduações, foram discretos ao vazarem suas opiniões pessoais sobre o descalabro no País.
Mas não deixaram de ir às ruas e às redes sociais solidarizar-se com a população indignada com o que se praticou e se insiste em praticar no Brasil.
Assim, mesmo adstritos aos seus deveres, mesmo cumprindo rigorosamente as missões que lhes são atribuídas, mesmo superando dificuldades de toda ordem e mesmo se mantendo afastados em relação à política, os militares são vistos como uma ameaça.
Eles devem ser neutralizados, isolados e antagonizados com a sociedade, de uma forma ou de outra.
Durante anos, o discurso revanchista contra a ditadura militar serviu bem à esquerda revolucionária, mas não só a ela.
Suprimir o papel institucional dos militares e a sua opinião na sociedade interessava a muita gente, por muitos motivos.
O esquema funcionou às mil maravilhas, para tudo e para todos que se locupletaram do poder, até sobrevir a debacle do PT. Demorou para a ficha cair e a sociedade brasileira se dar conta de quem eram na verdade os supostos paladinos da democracia.
Mas há sempre que se pressionar os militares, como confessou, em evidente ato falho, Nelson Jobim, então Ministro da Defesa.
Pressioná-los não para que cumpram os seus deveres, o que, por sinal eles teimam em fazer, e que, paradoxalmente, é um grande problema.
Desgraçadamente, para a elite pequena, fraca e despreparada que nos governa, parece haver sempre que se encontrar a forma e o discurso para pressionar os militares a fazerem não o que devem, mas sim a vontade dos nhonhôs e sinhás do sertão da política brasileira, onde só cabem as milícias e jagunços do seu horizonte de paróquia.
Se há uma lição que se pode tirar da História do Brasil é a de que todas as vezes em que surgiu uma crise militar o problema estava muito além dos militares.
Basta um pouco de bom senso para enxergar isso. Um pouquinho só.
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