Friamente, seria impensável que o assassinato de uma vereadora carioca, pouco conhecida fora do Rio de Janeiro, provocasse tamanha e tão unânime comoção nacional. Mas a morte de Marielle Franco (Psol) provocou esse efeito e chegou carregada de um incômodo recado para o governo.
Com o Rio há um mês sob intervenção militar na área da segurança pública, o crime organizado (PCC, Comando Vermelho), as milícias e a ala podre da PM e da Polícia Civil -um desses grupos ou todos eles combinados -mandaram um recado para o interventor, general Braga Neto, e para o secretário da Segurança que ele indicou, general Richard Fernandez Nunes.
Os criminosos que mataram Marielle na noite de quarta-feira (14/03) disseram basicamente o seguinte: vocês mandam na intervenção, mas quem manda no Rio somos nós.
Pouco importa que se confirme ou não a suspeita de que os assassinos têm como mandantes integrantes do 41o Batalhão da PM fluminense, duramente criticados pela vereadora.
O fato é que, num gesto hediondo e espetacular, o crime fez parte da linguagem cifrada de seu "diálogo" com as instituições republicanas.
Recapitulando: a intervenção no Rio encabeçava a pauta positiva do Planalto, depois do fracasso da Reforma da Previdência. O pretexto seriam os supostos excessos - eles não se comprovam nas estatísticas - dos criminosos durante o Carnaval.
O presidente Temer planejava se deslocar para o Rio neste próximo fim-de-semana para festejar o primeiro mês da intervenção. O caso Marielle comprovou, no entanto, que não há nada para festejar.
De certo modo, tornaram-se irrelevantes fatos como a vereadora pertencer a um
partido de extrema esquerda e ter uma biografia ligada a questões, grosso modo, identitárias (negros, gays, feministas, favelados).
No país -a começar pela presidente do STF,
ministra Carmen Lúcia -todos passaram a vê-la como uma ativista dos direitos humanos e das minorias.
E foi a agenda desse grupo mais amplo que os assassinos procuraram atingir.
TRÊS REAÇÕES DAS REDES SOCIAIS
Independentemente da rápida unanimidade que a morte de Marielle despertou -até o truculento
Carlos Marun, ministro da articulação política do Planalto se juntou ao cortejo -vale a pena sinalizar as reações nas redes sociais.
Um pequeno grupo do Psol se apoderou da imagem de Marielle e tentou impedir que sua biografia de militante fosse apropriada pela esquerda mais moderada, do PT e do PC do B. Mas isso não funcionou.
Uma espécie de federação das esquerdas tentou fazer o mesmo, mas para isolar a imagem de Marielle da tentativa de apropriação por parte de liberais, como os ministros do Supremo, a procuradora-geral da República ou o próprio presidente. Também não funcionou.
Havia algo bem maior, por trás da vereadora formada em sociologia (PUC-Rio) e com mestrado em Administração Pública (Universidade Federal Fluminense), assessora por dez anos do hoje deputado Marcelo Freixo (Psol), aquele que enfrentou no segundo turno de 2016 o hoje prefeito Marcelo Crivella.
Marielle Franco passou a catalizar, enquanto seu corpo era velado, um sentimento apartidário que foi bem resumido pelo senador Tião Viana (PT-AC).
A sociedade, da esquerda à direita, disse ele, precisa dialogar e se unir, caso pretenda vencer a guerra que está travando contra o
crime organizado e contra os policiais corruptos.
Essa união é ainda embrionária e nada indica que ela se efetivará. Mas já havia uma semente de um comportamento unitário, por exemplo, na noite de quinta-feira (15/03), na manifestação convocada pela internet para a avenida Paulista.
Feministas petistas e tucanas choravam umas nos ombros das outras. Secundaristas até agora apolíticos se justavam ao luto coletivo, movidos pelo medo de um futuro em que os criminosos se apoderariam do Estado e provocariam seu inevitável colapso.
Embora as referências nesse campo nunca sejam muito claras, é o medo de que o Brasil se transforme num Sudão do Sul ou numa Somália.
O JOGO DE DESAFIOS
E o que é que Temer tem a ver com isso? Ele entra na narrativa como um personagem que jogou para ganhar, mas que de um momento para o outro passou a perder.
A intervenção militar na segurança do Rio teve uma forte dimensão de marketing, que daria certo se os grupos que se apoderaram geograficamente de regiões inteiras da cidade recuassem diante dos blindados do Exército.
Nada indica que isso aconteceu. Mas o crime organizado elegeu como vítima justamente a personagem que catalizava uma dupla revolta: contra o poder efetivo do crime sobre as comunidades e contra os excessos da PM que, para combater os criminosos, acabava por atingir os pobres e os mais vulneráveis.
Por que os criminosos não sequestraram e mataram soldados do Exército? Por que não praticaram atentados a bomba em instalações militares ligadas à intervenção? Nesses casos, estariam num confronto direto com as Forças Armadas e dificilmente sairiam vencedores.
Mas a vereadora do Psol era ao mesmo tempo um alvo absolutamente fragilizado e altamente investido de significações. Atingi-la permitiu cobrir alvos simultâneos: a mulher, a negra, a favelada, a detentora de um mandato eletivo e a militante de um pequeno partido da extrema esquerda.
E por trás dos tiros que a mataram havia, por certo, um desafio à própria intervenção militar. E ainda sob o pano de fundo mais extenso, havia
Michel Temer, em que pese sua rápida declaração de revolta contra o assassinato. Ele foi desta vez o grande desafiado.
FOTO: Fernando Frazão/Agência Brasil