Os caminhoneiros e o desencanto com a política
Datafolha revela que paralisação foi apoiada por 87% dos brasileiros. que se identificaram com os motoristas dos transportes de carga na contestação ao Executivo e ao Congresso

A constatação é aparentemente absurda. Depois de 11 dias de prejuízos superlativos à economia e à rotina dos cidadãos, 87% dos brasileiros ainda apoiam a paralisação dos caminhoneiros.
É o resultado de pesquisa do Datafolha publicada nesta quarta-feira (30/5).
Pelo levantamento, 65% também acreditam que os caminhoneiros deveriam permanecer parados, e outros 87% não querem cortes no Orçamento ou aumento de impostos para cobrir as concessões feitas pelo governo.
O apoio é tão acachapante que recobre, ao mesmo tempo, campos divergentes do tablado ideológico. Há nesse bolo simpatizantes do PT, do deputado Jair Bolsonaro e, com certeza, também muitos liberais.
Não há muita racionalidade nessa espécie de desabafo da opinião pública. O que destila dessa cumplicidade com o movimento no transporte de cargas é, no fundo, uma aversão generalizada à classe política.
UM PARALELO COM 2013
Os caminhoneiros foram o ponto de catalisação de uma ideia latente de protesto que amadurecia na sociedade, de maneira muito semelhante ao que ocorreu em junho de 2013, quando do reajuste dos transportes públicos.
A ida às ruas naquele ano, iniciada em São Paulo contra o aumento do ônibus e do metrô em R$ 0,20, tem uma semelhança fundamental com o movimento que agora se esgota: eram processos que, com muitos pais ao mesmo tempo, acabavam por se comportar segundo a lógica anárquica da absoluta orfandade.
Sem uma hierarquia de comando, cada participante poderia atirar na direção que julgasse conveniente, sabendo que não correria o risco de errar o alvo.
Em 2013, o sentimento de base era o protesto pelo desgoverno, pela má qualidade dos serviços públicos, pela inadequação entre os políticos e as reivindicações de um moralismo difuso que as pessoas só conseguiam expressar indo às ruas.
Em 2016, o estopim esteve nos reajustes sucessivos da Petrobras, provocados pela alta do dólar e por aumentos do petróleo, derivados das novas sanções americanas contra o Irã e das “eleições” que perpetuavam a incompetência na gestão do petróleo da Venezuela.
São fatores excessivamente complexos para o caminhoneiro preocupado apenas com o preço do óleo diesel na bomba dos postos de serviço.
Por detrás das majorações sucessivas, estava a estatal do petróleo, como biombo que abrigava o palácio do Planalto.
UM CLIMA DE DESAPONTAMENTO
Mas o Executivo federal se tornou uma simples metonímia – figura de retórica em que uma parte funciona como representante de um todo. E esse todo era a classe dirigente, os inconfiáveis políticos.
Essa falta de confiança já vinha de longe. Ela surgiu do impeachment de Collor, da CPI dos anões do Orçamento, do Mensalão petista (o tucano foi de início localizado a Minas Gerais), das manifestações de 2013, do estelionato eleitoral de 2014 que abateu a popularidade de Dilma Rousseff, e das manifestações de rua que provocaram o impeachment de 2016 e depois do qual Michel Temer e a corrupção no MDB foram apenas a cereja apodrecida em cima do bolo.
Essa sequência de desapontamentos correu, nos últimos quatro anos, em paralelo com a Lava Jato, operação que funcionou, em termos de mentalidade, numa dupla direção.
De um lado, ela descobriu a profundidade e a extensão da corrupção na Petrobras patrocinada pelo Executivo e pelo Congresso. Corrupção patrocinada pelo pelotão de empreiteiras que davam uma auréola de modernidade e de inserção internacional ao capitalismo brasileiro.
De outro lado, no entanto, a Lava Jato demonstrou o quanto eram ocas as imagens de santos que catalisavam liderança e popularidade. Lula, Aécio Neves e muitos outros foram levados de roldão.
Se os políticos são corruptos, eles não nos representam. Com isso, qualquer movimento que eclode dentro da sociedade em protesto contra a administração pública passa a despertar simpatias desmedidas.
TENTATIVAS DE “TIRAR UMA CASQUINHA”
O curioso é que, para tanto, não foi necessária a verbalização. Os caminhões que percorrem as estradas não são conduzidos por doutores em ciências políticas ou por formuladores de plataformas partidárias.
São pessoas simples e que, atuando em nome próprio ou em nome das empresas a que estão vinculados (o locaute realmente existiu, mas com a cumplicidade de quem estava ao volante), tornaram-se porta-vozes de uma reação nacional de descontentamento.
A amplitude dos 87% de apoio contabilizado pelo Datafolha atropela as teorias conspiratórias que ingenuamente procuravam identificar quem estaria por trás do protesto.
É verdade, por exemplo, que Jair Bolsonaro insuflou o movimento pelo twitter e em declarações e que, em seguida, recuou para não ser o único responsabilizado pelo desabastecimento de hospitais e das cantinas da merenda escolar.
É igualmente verdade que os partidários da intervenção militar utilizavam as Forças Armadas como antídoto aos políticos, submetidos a um nítido sentimento de rejeição.
Mas as lideranças militares deixaram claro que não entrariam no jogo do golpismo. Nesta quarta-feira há declarações nesse sentido dos generais Augusto Heleno, hoje na reserva e ex-comandante no Haiti, e Joaquim Silva e Luna, na ativa e ministro da Defesa.
E é por fim também verdade que o PT tentou – sem sucesso algum – assumir a dianteira do protesto, com a bandeira inútil pela libertação de Lula.
Com o malogro da manobra petista, o braço sindical do partido desencadeou uma greve dos petroleiros que pretende – algo nefelibata ao extremo – depor o presidente da Petrobras.
É inegável que, mesmo sem uma verbalização precisa, a sociedade esteja desesperada por sentir que a democracia está enferma.
E mesmo os que querem mantê-la – todos os brasileiros, exceto os partidários da intervenção militar –, hoje acreditam que as eleições de outubro darão ao Brasil um novo presidente da República, mas não resolverão o problema.
O que fazer, então? A partir de agora, só a História dirá.
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