São Paulo, a cidade que odiamos amar

Como, afinal, reconhecer e aceitar o amor por uma cidade feia, com tantos problemas, que parece maltratar tanto seus moradores?

Vitor França
25/Jan/2024
Economista pela FEA-USP e mestre em economia pela FGV-SP
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São Paulo, a cidade que odiamos amar

É aniversário de São Paulo e, como em todos os anos, somos inundados por artigos, reportagens, vídeos e posts exaltando a grandeza da cidade, seu poderio econômico, sua diversidade, seu cosmopolitismo, suas muitas opções de cultura, lazer e gastronomia.

A verdade, porém, é que há algo de forçado nessa exaltação. Ou vai ver essa exaltação toda apenas esconde outra verdade: não é fácil gostar de São Paulo. Ou aceitar que se gosta de São Paulo. Todo ano, por exemplo, pesquisa da Rede Nossa São Paulo revela que pelo menos 60% dos moradores sairiam daqui, se pudessem. Que cidade é esta tão incrível da qual a maioria da população quer fugir?

Lembro de um ótimo artigo do carioca Gregório Duvivier em que ele pede desculpas por ter falado bem de São Paulo em um texto anterior, o que resultou em uma enxurrada de e-mails de leitores inconformados com os elogios. “Não se elogia São Paulo impunemente”, brinca Gregório.

Eu mesmo, aqui na minha coluna no Diário do Comércio, não costumo economizar nas críticas à cidade. “... era apenas a mesma São Paulo de sempre, com suas vias cheias de carros; a mesma cidade rica e desigual, cinza, suja, poluída, com o passado abandonado dando lugar a um sonho de futuro que não chega; ou que se revela apenas como um eterno presente deprimente e distópico. Passada a noite, apagadas as luzes, nem de longe, nem de lá de cima de um dos mais altos arranha-céus de São Paulo, era possível se esconder dos muitos problemas da cidade; problemas que parecem simplesmente não ter solução, a despeito dos enormes investimentos públicos e privados realizados ao longo dos anos”, escrevi em “Qual é o melhor lugar para ver São Paulo de cima?”.

“... a doença de São Paulo se revelou no comércio de portas fechadas, nas placas de aluga-se, nos moradores de rua, nas calçadas estreitas em péssimo estado de conservação, na falta de verde, de árvores, bancos, nas grades e nos muros altos dos novos condomínios, no arame farpado, no lixo jogado no chão, nos recentemente construídos prédios bege ou cinza recuados, sem graça e sem qualquer relação com o entorno”, escrevi em “Cidades doentes?”.

“São Paulo, a cidade que amamos odiar”, dizia a capa de uma Veja São Paulo de anos atrás abordando o aniversário da cidade, se bem me lembro. Ou seria a cidade que odiamos amar? Afinal, como reconhecer e aceitar o amor por uma cidade feia, com tantos problemas, que parece maltratar tanto seus moradores?

Por falar em cidade feia, lembrei aqui de outra polêmica que se estabeleceu nas redes sociais quando um paulistano exaltou a “vista maravilhosa para o Minhocão” de um rooftop recém-inaugurado no centro da cidade. Conforme relatou Marcos Nogueira em sua coluna na Folha, cariocas, mineiros, baianos, maranhenses, capixabas e pernambucanos ironizaram o conceito de “vista maravilhosa” dos paulistanos. E – que me perdoem meus colegas paulistanos – com alguma razão.

“Uma metrópole feia, suja, degradada, pouco acessível e quase nada convidativa; violência, golpes, roubos, furtos, cracolândias, desigualdade, luxo, pobreza; lugares cheios, solidão, pessoas vazias; gente se virando para sobreviver, gente buscando motivo para seguir vivendo; gente enlouquecendo dentro de suas próprias bolhas; e, apesar de tudo isto, uma cidade excitante e cheia de possibilidades”, escrevi em “Passeando por São Paulo na literatura contemporânea”. 

São Paulo é, sim, uma cidade feia, muito feia. Nem por isso deixa de ser um local extremamente interessante, excitante, cheio de surpresas, possibilidades, novidades e belezas que parecem surgir inclusive de suas contradições. “Mas não é impossível encontrar lógica na cidade e, assim, não só ver nela certo encanto, por estar alheia a disneyzação do turismo, como inclusive admirá-la. Quando a gente percebe, está num lugar que conseguiu o impossível [...]: não se parecer com absolutamente nada”, escreve o espanhol Tom C. Avendaño em artigo imperdível no El País.

“Ser bonita não interessa. Seja interessante!”, diz a famosa frase do Nelson Rodrigues. E talvez ser interessante seja uma das principais virtudes da nada bela capital paulista. Fiquemos no exemplo do Minhocão. Apesar da degradação da paisagem urbana, é incrível, por exemplo, caminhar pela via fechada para carros aos finais de semana e observar de perto os grafites nas empenas cegas dos edifícios. Sim, uma vista que definitivamente não é linda na acepção mais comum do termo; mas é, sem dúvida, uma vista única, trágica, inusitada e, por que não, maravilhosa.

Nem por isso o Minhocão deixa de ser uma “medonha estrutura elevada de concreto armado [...], uma via expressa para carros que rasga a cidade ligando as regiões leste e oeste, trouxe muito barulho e poluição para os moradores dos prédios do entorno; e sombra, degradação e insegurança para as até então belas praças, ruas e avenidas da região”, conforme já escrevi em outro artigo.

E não é por ter se transformado em um verdadeiro museu de arte urbana a céu aberto que não deveria ser demolido. “O avesso do avesso do avesso do avesso”, martelam os versos do Caetano na minha cabeça. O que há de melhor e de pior em São Paulo parece florescer de suas contradições. O muro que mata a vida na rua ganhando vida com o grafite e a crítica social de um dos muitos artistas de rua que surgem todos os dias na cidade segregada. “O avesso do avesso do avesso do avesso”.

Posso dizer com segurança que faço parte da minoria que não tem a intenção de abandonar São Paulo; gosto demais da cidade, mas é mesmo meio difícil aceitar ou explicar por quê. “Tem algo em Buenos Aires, em San Telmo, que parece que está no meu organismo. Gosto de ficar admirando os grafites de rua, gosto de observar as moças de cabelo colorido e os rapazes de roupa bagunçada [...], gosto de tomar café cada dia em um lugar diferente, [...], de caminhar e de entender como as pessoas mudam de cara de um canto para outro da cidade. Ou talvez Buenos Aires represente para mim a aposta, a esperança. Quando cheguei aqui, parecia que sempre encontraria a felicidade na próxima esquina”, diz um personagem de “O amor segundo Buenos Aires”, de Fernando Scheller, que coincidentemente estou terminando de ler.

É mais ou menos como me sinto em relação a São Paulo. Cresci em Osasco, cidade vizinha na Região Metropolitana, e ir à capital na infância e juventude sempre me deixava empolgado; era ali que a vida parecia estar acontecendo; ali que sempre havia algo para ser descoberto e redescoberto. Escolhi viver em São Paulo e, mesmo depois de ter viajado por muitas grandes cidades ao redor do mundo, é na capital paulista que me reconheço; e é esta a cidade que, quanto mais conheço, mais desperta a minha curiosidade. E também, é claro, a minha inconformidade.

Até por isto, nesta celebração de 470 anos de São Paulo, não poderia escrever mais um artigo apenas exaltando suas grandezas ou mesmo seu charme pouco óbvio. Entender as belezas e surpresas que surgem de suas contradições ou mesmo da sua decadência não pode significar abandonar a cidade à própria sorte. São Paulo tem muitos problemas e merece presentes que a permitam sonhar com um futuro melhor, no qual a maioria de seus moradores passem a se sentir parte desta complexa metrópole e não mais desejem simplesmente abandoná-la na primeira oportunidade. Por mais interessante e vibrante que São Paulo seja, ela ainda deixa muito a desejar em aspectos relacionados à qualidade de vida e direito à cidade, conforme tenho procurado destacar nos meus artigos aqui no Diário do Comércio e no Caos Planejado.

**As opiniões expressas em artigos são de exclusiva responsabilidade dos autores e não coincidem, necessariamente, com as do Diário do Comércio

 

IMAGEM: Grafite do artista de rua Paulo Ito na Rua Gago Coutinho, na Lapa

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