Brás, Bexiga, Barra Funda... Seul, São Paulo
Bolivianos são atualmente a maior comunidade de imigrantes vivendo em São Paulo; romance “Seul, São Paulo”, de Gabriel Mamani Magne, é um belo convite para conhecer um pouco mais a respeito de sua cultura, suas impressões, as dificuldades e os prazeres da vida desses imigrantes na capital paulista
Ao tentarmos descrever São Paulo, é normal recorrermos a expressões como “metrópole cosmopolita”, “mosaico de culturas”, “pluralidade”, “diversidade”. “Uma cidade diversa construída por migrantes e imigrantes” foi uma das respostas que o ChatGPT me deu quando pedi uma definição da indefinível capital paulista.
De fato, a imigração teve um papel central na formação social e cultural da Pauliceia, e muitos aspectos das diferentes culturas que para cá vieram fazem hoje parte do nosso dia a dia e do nosso imaginário coletivo sobre a cidade.
As cantinas italianas do Bixiga, as luminárias e mercadinhos orientais da Liberdade, o k-pop nos bares e karaokês do Bom Retiro, a comunidade judaica pelas ruas de Higienópolis, as famílias de comerciantes armênios, sírios e libaneses das lojas da 25 de março...
Enquanto a imigração europeia, asiática, do mundo árabe e do oriente médio ocupa esse papel central no nosso imaginário a respeito de São Paulo, a imigração africana (no passado, de pessoas escravizadas) e sul-americana costuma receber muito menos destaque. São Paulo é Portugal, é Espanha, é Itália, é Síria, é Líbano, é Japão, é Coreia, é verdade. E São Paulo também é África, é China, é Haiti, é Peru e é... Bolívia.
Talvez nem todo mundo saiba que, atualmente, a principal comunidade estrangeira vivendo em São Paulo é formada pelos nossos vizinhos bolivianos. Segundo estimativas não oficiais, há mais de 300 mil imigrantes da Bolívia vivendo aqui. A imigração boliviana ganhou força a partir da década de 1990 e está associada principalmente à mão-de-obra na atividade têxtil.
O recentemente publicado romance “Seul, São Paulo”, do boliviano Gabriel Mamani Magne, lança luz sobre essa comunidade de imigrantes ao falar a respeito de sua cultura, suas impressões, as dificuldades e os prazeres da vida na capital paulista – e, com isto, colabora para que ela também seja devidamente integrada nesse mosaico de culturas que é São Paulo.
Na história, o narrador nos fala de seu primo Tayson Pacsi, brasileiro filho de bolivianos que vieram para São Paulo para trabalhar em oficinas de costura. Para além das questões relacionadas à racismo, xenofobia, pertencimento, relações de trabalho e pobreza, o romance também nos convida a refletir sobre as transformações na própria cidade decorrentes, dentre outros fatores, dos fluxos migratórios mais recentes. Como, por exemplo, as observadas no tradicional distrito do Brás, na região central.
Do final do século XIX até a primeira metade do século XX, o Brás foi marcado pela forte presença da comunidade italiana – até hoje é realizada no bairro a tradicional festa de São Vito, já em sua 106ª edição. De importante polo industrial no passado, no qual grande parte da mão de obra e dos moradores era formada por imigrantes italianos, hoje o distrito é referência na produção e comércio popular de vestuário e acessórios, com representativa participação da comunidade boliviana.
A Rua Oriente, onde vivia com a família o ítalo-brasileiro Gaetaninho do conto que abre o clássico da literatura brasileira “Brás, Bexiga e Barra Funda” (1927), de Antônio de Alcântara Machado, hoje não conta mais com a linha do bonde e é completamente dominada por lojas de roupa de todo tipo, de moda feminina e masculina a enxovais para bebês.
Entre o final dos anos 2000 e início dos anos 2010, era lá perto, na Rua Coimbra, que o boliviano-brasileiro Tayson Pacsi de “Seul, São Paulo” comprava roupas nas lojas dos concorrentes coreanos para seus familiares copiarem ou aprimorarem seus modelos.
É daí, por sinal, que vem a referência à Seul (capital da Coreia do Sul) do título, referência esta que envolve não apenas a concorrência entre as comunidades de imigrantes no mercado de confecções, mas também suas semelhanças (“Nisso somos parecidos com os asiáticos. Por mais que a gente queira, não podemos esconder o que somos”) e a paixão de Tyson pelo k-pop.
"Na América Latina, achamos que tudo o que importa vem de mais longe. Foi muito legal para mim saber que existe um mundo bem do lado da Bolívia com tanta cultura e tantas opções", disse o autor Gabriel Mamani Magne em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo ao comentar sobre a surpreendente diversidade cultural de São Paulo.
A diversidade cultural e as muitas opções de lazer e entretenimento, contudo, não ocultam outro aspecto muito característico da vida em São Paulo, sobre o qual também já falei em outro artigo recente aqui no Diário do Comércio. “São Paulo é um bloco colossal de cimento que nada tem a ver com a ideia praiana de Brasil vendida pela mídia. Homens de terno e mulheres de rosto comprido. Olheiras sobre peles brancas. Olheiras sobre peles café com leite. E tudo nas pessoas parece dizer: trabalho trabalho trabalho”, comenta o narrador sobre as suas primeiras impressões da Pauliceia.
Particularmente árduo parece ser o trabalho na confecção de roupas. “Comparado ao trabalho nas oficinas de costura, vender pipoca é brincadeira de criança”, relata seu primo Tyson quando já voltou para El Alto, onde durante um breve período passa a trabalhar como pipoqueiro.
Além de propiciar uma reflexão sobre São Paulo e suas transformações, sobre a forma como diferentes comunidades estrangeiras são incorporadas ao cotidiano e ao imaginário da cidade, sobre como os imigrantes influenciam e são influenciados pela Pauliceia, o livro também não deixa de ser um convite para conhecer um pouco mais da “Mini-Bolívia” implantada logo ali no Brás. É exatamente a Rua Coimbra, onde Tyson fazia seus “corres”, por sinal, que concentra boa parte dos restaurantes bolivianos da região. Também lá é realizada aos finais de semana uma colorida e movimentada feira típica de produtos bolivianos. Vale a visita!
IMAGEM: Andrei Bonamin/DC