São Paulo Sociedade Anônima Nas Alturas
Assistir ao filme ‘São Paulo Sociedade Anônima’ (disponível agora na Netflix) à luz das análises do livro ‘São Paulo Nas Alturas’ foi uma experiência bem interessante ao revelar, com cenas do passado, o que parece ter sido um ponto de inflexão no desenvolvimento urbano de São Paulo
A Netflix disponibilizou recentemente em seu catálogo “São Paulo Sociedade Anônima”, de 1965, dirigido por Luís Sérgio Person e estrelado por Walmor Chagas, Eva Wilma, Darlene Glória, Ana Esmeralda e Otello Zeloni – o filme já estava disponível gratuitamente desde janeiro no streaming do Itaú Cultural.
Trata-se de uma ótima oportunidade para ver ou rever um dos maiores clássicos do cinema brasileiro e, de quebra, se deslumbrar com cenas antigas do Centro de São Paulo em um dos momentos mais pujantes da história econômica da cidade.
A trama gira em torno da vida de Carlos, um jovem de classe média em crise existencial que faz carreira na então efervescente indústria automobilística. Em meio a múltiplas – mas ilusórias? – possibilidades amorosas e profissionais oferecidas pela cidade, ele acaba engolido pela metrópole que, na verdade, não parece lhe oferecer saída ou sentido para além do papel de mera engrenagem anônima no acelerado processo de acumulação do capital.
A história do filme se passa entre 1957 e 1961, período englobado pelas análises do também já clássico livro “São Paulo Nas Alturas”, de Raul Juste Lores, que conta a história do mercado imobiliário da cidade nos anos 1950 e 1960.
Conforme apresentado já na orelha do livro, particularmente na década de 1950, “uma combinação particular permitiu que a cidade de São Paulo fosse palco de uma revolução até então inédita em sua história – a união de arquitetos criativos, empreendedores ambiciosos e a disponibilidade de capital financeiro possibilitou as condições necessárias para que obras icônicas saíssem das pranchetas e ganhassem as ruas da Pauliceia, modificando seu cenário arquitetônico”.
Foram construídos no período, por exemplo, prédios revolucionários como o Copan, o Conjunto Nacional, a Galeria do Rock e o Edifício Itália (o qual inclusive aparece, na sua fase final da construção, em algumas cenas filmadas na Praça da República em que Carlos, interpretado por Walmor Chagas, conversa com Luciana, personagem da Eva Wilma).
Rever o filme agora, à luz das análises de Lores, foi uma experiência bem interessante ao revelar, com cenas do passado, o que parece ter sido um ponto de inflexão no desenvolvimento urbano de São Paulo – e que teve como um dos principais vetores dessa mudança de rumo a rápida expansão da indústria automobilística, elemento central do filme.
O ponto de partida cronológico da história – o ano de 1957 – coincide exatamente com o início do fim do que Lores batizou de “milagre arquitetônico” vivenciado pela capital paulista.
Em seu livro, além dos fatores econômicos por trás do fim desse “milagre” (como a construção de Brasília e a consequente inflação dos materiais de construção), Lores destaca particularmente a lei nº 5261 de 1957 (!), que buscava desadensar a região central da cidade ao introduzir limites construtivos mais rigorosos, desestimular a produção de apartamentos pequenos e praticamente inviabilizar a verticalização em terrenos menores.
“Ao limitar a construção, a lei encareceu o valor do metro quadrado nas áreas centrais, empurrando o mercado imobiliário para bairros de metros quadrados mais baratos, sem infraestrutura de transporte público, onde se poderia construir de forma menos densa. A medida também inutilizou os terrenos menores para verticalização nessas áreas centrais, convertidos em garagens e estacionamentos improvisados. [...] A lei de 1957 [também] reduzia a oferta de apartamentos pequenos e a possibilidade de maior número de unidades em áreas centrais”, explica o autor (páginas 260 e 261 da nova edição).
Tais medidas, é evidente, vão ao encontro dos interesses da indústria automobilística, elemento central tanto no filme de Person como no planejamento urbano dos anos posteriores, o qual deu prioridade aos carros e incentivou o danoso espraiamento da cidade, acompanhado pelo igualmente danoso esvaziamento populacional do centro.
Além disto, com a legislação urbana vigente a partir de então, foram praticamente inviabilizadas novas edificações semelhantes aos prédios icônicos que marcam até hoje a paisagem paulistana.
Para mim, que já havia assistido ao filme, me pareceu ainda mais irônica agora a famosa cena (alerta de spoiler) em que Carlos rouba um carro para fugir de São Paulo, mas desperta, no dia seguinte, entre trabalhadores cuja função é abrir novas estradas. “A cidade se amplia e não permite a emancipação de Carlos”, analisam os editores da Enciclopédia Itaú Cultural. A cidade se espalha e vê se agravarem seus problemas urbanos, complemento eu.
É claro que se trata de uma “obra atemporal e universal”, como classificou a própria Marina Person, filha do diretor, para quem “Carlos [...] encarna os medos e angústias de todos que questionam seu lugar no mundo e na engrenagem de uma sociedade agravada pela força do dinheiro e do desenvolvimento como São Paulo”.
À luz de tudo o que sabemos hoje, em grande medida por conta do excelente trabalho jornalístico de Lores, fica difícil não associar ao menos parte do desespero e da desorientação de Carlos também à perda de rumo do desenvolvimento urbano da cidade, que abandonava sua região central e a ambição das obras icônicas e cheias de personalidade que marcaram nosso breve “milagre arquitetônico”, e passava a crescer de forma espalhada e genérica, ainda mais segregada e desigual.
Ao “milagre arquitetônico”, afinal, se segue o “milagre econômico” da ditadura militar, quando passam a ser construídos mais e mais viadutos e elevados que, para favorecer o fluxo dos veículos, simplesmente destruíram muitas das nossas mais belas praças e avenidas do Centro, contribuindo para a degradação da região. Construções mais ambiciosas como as que marcaram os anos 1950 e 1960, por sua vez, dão lugar a edificações cada vez mais genéricas, padronizadas, de menor custo.
São as décadas de 1970 e 1980, por sinal, que concentram até hoje o maior número de imóveis construídos e ainda em pé em São Paulo, quase todos eles fora do Centro e influenciados pelo Plano Diretor de 1971 e pela Lei de Zoneamento de 1972, que estabeleceram os recuos frontais e laterais obrigatórios, resultando nos inúmeros prédios isolados no lote, sem vida no térreo. Isto, somado ao aumento da violência e da sensação de insegurança, levou à proliferação das grades ou muros, prejudicando ainda mais a vitalidade urbana.
As restrições impostas para as construções – sendo elas majoritariamente prédios com poucas unidades relativamente grandes, para atender as famílias mais ricas – acabou por levar a crescente população para áreas cada vez mais periféricas da cidade, muitas vezes para ocupações irregulares, agravando com isto os problemas ligados a mobilidade, habitação, infraestrutura e meio-ambiente.
Ao ler “São Paulo Nas Alturas” e pensar no que a cidade talvez pudesse ter se tornado, em contraposição a isto em que ela se transformou, é impossível não se sentir pelo menos um pouco angustiado como o Carlos de “São Paulo Sociedade Anônima”.
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IMAGENS: reprodução