Por que não ele?
Todas as vezes que um poder, governo ou ideologia pretendeu extinguir a religião foi para impor a sua própria, transfigurada em instrumento de dominação da sociedade
O oportunismo que não vê nada de errado na desfaçatez de um candidato marxista ir à missa e comungar por mera conveniência política é o mesmo que se mostra velhacamente preocupado com o comprometimento da laicidade do Estado devido às manifestações de cunho religioso por parte do presidente eleito.
O Ocidente percorreu um longo e acidentado caminho até chegar ao ponto de o Estado assegurar a liberdade de culto a seus cidadãos, oferecendo-lhes garantias de não governar, não legislar e não julgar segundo a religião.
Algo muito distinto de as pessoas professarem uma religião e se conduzirem individual e coletivamente segundo preceitos dessa religião, sempre em obediência à lei comum. Além do que, é preciso distinguir o público do oficial.
Um ligeiro perpasse pela História mostra que a civilização a que pertencemos nasceu sob a égide da Igreja Católica que fez do livre arbítrio a mais importante contribuição à Humanidade por todas as consequências que a fé em um deus misericordioso, transcendente e onipresente trouxe para a política, a moral, a ética e o conhecimento.
O Brasil é parte dessa História. Aqui floresceu uma sociedade sincrética pela combinação de etnias e crenças assimiladas na universalidade cristã.
Talvez por termos ficado ao largo das tragédias das guerras e perseguições religiosas, historicamente, tornamo-nos uma sociedade de soma, não de divisão. Algo que, a despeito de nossos problemas e desafios, sempre poderemos oferecer ao mundo.
O que o oportunismo laicista em voga pretende, fazendo terra arrasada da História, é, na verdade, transformar a sociedade brasileira pela progressiva inconsciência civilizacional.
Levar-nos a esquecer o que somos, para deixar de ser o que somos.
O risco subjacente é no que nos transformaremos se banirmos da vida pública a religião. Aonde isso vai nos levar, dados os precedentes históricos?
Todas as vezes que um poder, governo ou ideologia pretendeu extinguir a religião foi para impor a sua própria, transfigurada em instrumento de dominação da sociedade.
Essa sequência de desastres históricos começou no anticlericalismo radical da Revolução Francesa que chegou ao seu ápice com o culto substitutivo apresentado por Robespierre como um reordenamento das ideias religiosas e morais, o qual, no dizer de Mona Ozouf (p. 602), escandalizou historiadores pela coexistência no espaço parisiense da guilhotina e dos buquês ao Ser Supremo.
Por sua vez, como Raymond Aron observou, Marx, o jovem, foi bem claro quando colocou que a crítica da religião é uma crítica da realidade que dá origem a essa religião; uma maneira de pensar que só pode ser superada com a ultrapassagem dessa realidade pela ação realizadora da verdade filosófica, a propositura que incompatibiliza definitivamente o marxismo com o cristianismo.
Hitler, no início de 1937, afirmou que o “cristianismo está maduro para a destruição”, recusando qualquer acordo com “a mais horrível instituição que se possa imaginar”, antecipando sua convicção, mais tarde consolidada, na “oposição insolúvel entre a visão de mundo germânico-heroica e a cristã” (KERSHAW, p. 414, 696).
Mas para além desse mundo empírico de tragédias, deve-se ter em conta aquela consciência transcendente da revelação judaico-cristã que permeia a sociedade ocidental de maneira mais profunda e permanente do que as construções filosóficas que, por vezes, dela zombam.
Como alertou Eric Voegelin, “cada sociedade organizada é sustentada por um campo social de consciência expresso em sua respectiva teologia civil, mas esse campo de sustento não é o único campo social na sociedade: muitos desses outros campos se estendem muito além da esfera de seu poder” (In ANAMNESE, p. 498).
Desconhecer ou negar o papel da religião na sociedade merece o comentário que David Walsh fez no prefácio à obra de Voegelin: “Há algo cômico acerca da busca torturada de filósofos por uma realidade que é conhecida muito intimamente pela mais simples velhinha dos bancos das igrejas” (Ibid., 37).
Deus.
Por que não Ele?
PS: Sem querer cansar o leitor, são listadas abaixo algumas obras tomadas por referência que podem interessar aos que desejem aprofundar a leitura e o estudo.
ARON, Raymond. O Marxismo de Marx. São Paulo: Arx, 2003.
KERSHAW, Ian. Hitler. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
OZOUF, Mona. Religião Revolucionária, Instituições e criações. In: FURET, François; OZOUF, Mona. (Org.), Dicionário Crítico da Revolução Francesa. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 596 – 607.
VOEGELIN, Eric. Anamnese da Teoria da História e da Política. São Paulo: É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda., 2009.
IMAGEM: Pixabay
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