O novo modelo de identificação nacional do cidadão
Na prática, cada ICN-CPF terá vinculação aos respectivos dados biométricos (digitais de dez dedos e fotografia da face) de cada cidadão, com unicidade de registros e garantia de identificação inequívoca

Você consegue imaginar um ministro ter que reconhecer sua firma em cartório para conseguir o CNPJ?
O mais raso bom senso diria que a inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica de um novo ministério, o famoso CNPJ, deveria ser automática, de ofício, considerando que não faz sentido que órgão da União cumpra requisitos burocráticos para sua solicitação e obtenção.
A criação de ministério decorre da lei e o seu titular é nomeado pelo presidente da República, tudo devidamente publicado no diário oficial. Mas não é assim que acontece.
Ao sentar na cadeira de ministro da Micro e Pequena Empresa, em maio de 2013, Guilherme Afif Domingos enfrentou essa primeira afronta burocrática que –depois de muitos protestos e da promoção dos inegáveis avanços simplificadores constantes da Lei Complementar 147, de 7 de agosto de 2014, por ele patrocinada –resultou na criação do Programa Bem Mais Simples Brasil, sob sua coordenação, com a finalidade de simplificar e agilizar a prestação dos serviços públicos e de melhorar o ambiente de negócios e a eficiência da gestão pública.
Ainda lembro da dificuldade para explicar ao então ministro Afif sobre a exigência de preencher formulário, encartar documentos, como a cópia do Diário Oficial com sua nomeação e seus documentos pessoais e, o pior de tudo, providenciar o reconhecimento da firma de sua assinatura. Isso rendeu bons constrangimentos para o pessoal da Receita Federal e a revogação da exigência de reconhecimento de firma aconteceu logo após o Natal do mesmo ano, de forma discreta, diria quase envergonhada.
A questão da identificação inequívoca do cidadão em uma base de dados compartilhada entre todos os órgãos para acesso aos serviços públicos e para aumentar a segurança nos atos civis é central para o avanço de medidas de simplificação, como demonstra o exemplo da finada exigência de reconhecimento de firma para o CNPJ.
Portanto, uma das primeiras medidas do Programa Bem Mais Simples Brasil foi enfrentar essa questão, propondo um novo modelo a partir da colaboração com o Tribunal Superior Eleitoral, que já dispunha de um extenso programa de coleta de informações biométricas dos brasileiros. Isso permitiu construir uma proposta de parceria, com foco na coordenação de ações entre Poder Executivo e Poder Judiciário e decorrente economia de recursos públicos pela eliminação de ações paralelas.
Criado o programa em fevereiro de 2015, já em maio desse mesmo ano foi elaborado e apresentado ao Congresso Nacional, pelas presidências da República e do TSE, o Projeto de Lei 1.775, que propunha a criação de um registro civil nacional e de um documento nacional de identificação.
A nova proposta tinha como essência promover a interoperabilidade entre as bases de dados públicas como forma de criar um número único de identificação e permitir identificar o cidadão com segurança a partir da biometria.
Não há, no Brasil, a centralização da identificação do cidadão desde o seu nascimento. Só recentemente iniciou-se a prática de controlar e monitorar as emissões de certidões de nascimento por cerca de 7.300 cartórios de registro civil, que são a base para a expedição de carteiras de identidade por 27 secretarias de segurança estaduais. Há milhares de brasileiros, aliás, que possuem carteiras de identidade de dois ou mais Estados.
Além disso, todos os demais documentos de identificação de órgãos federais, que chegam a 20, têm origem em sistemas descentralizados sem controle unificado.
As falsificações de documentos de identificação, diante dessa balbúrdia de competências e bases de dados, traz ao País prejuízos anuais de R$ 60 bilhões, segundo o Senado Federal. Existe até um indicador privado de tentativas de fraude dando conta de que, no período entre janeiro e setembro de 2017, o Brasil sofreu 1,47 milhão de tentativas de fraudes, uma a cada 16 segundos, visando a compra de celulares, automóveis, aparelhos eletrônicos, emissão de cartões de crédito e abertura de contas-correntes.
Essa verdadeira bagunça ajuda a explicar a Lei 11.598, de 2007, ter criado um cadastro nacional de documentos extraviados, roubados ou furtados para dar mais segurança na verificação de dados de identificação, que seria disponibilizado na internet em junho de 2009 pelo Ministério da Justiça, mas que, como outras várias jabuticabas, até hoje não vingou.
Já em 1997, foi sancionada a Lei 9.454, que criou o número único de Registro de Identidade Civil (RIC) – e o cadastro nacional de registro de identificação civil como tentativa de unificação que dependia de convênios com os Estados e o Distrito Federal para seu funcionamento, mas que também não prosperou diante das dificuldades desse modelo colaborativo, entre outras questões.
Enfim, em maio de 2017, dois anos depois da apresentação do PL 1775 e de vinte anos da Lei 9.454, foi editada a Lei 13.444, que cria a Identidade Civil Nacional (ICN) – com a utilização da base de dados biométricos da Justiça Eleitoral, da base de dados do Sistema Nacional de Informações de Registro Civil (SIRC), do Poder Executivo Federal, e da Central Nacional de Informações do Registro Civil (CRC Nacional), instituída pelo Conselho Nacional de Justiça, bem como de bases dos institutos de identificação dos Estados e do DF, entre outras.
A base de dados do ICN, segundo a nova lei, será armazenada e gerida pelo TSE, que garantirá aos demais órgãos federais, estaduais e municipais acesso gratuito, e poderá ser consultada, inclusive quanto à biometria, por cidadãos e empresas.
Sendo uma iniciativa de amplo interesse nacional, o ICN será gerido por representantes dos três poderes, o que visa assegurar base segura de integração de ações e interoperabilidade entre os vários sistemas do Poder Executivo e do Poder Judiciário.
Depois da unificação das várias bases de dados deve começar a ser expedido o Documento de Identificação Nacional (DIN), a partir da criação de um número único nacional para cada cidadão. O DIN não é obrigatório, mas deve, ao longo do tempo, substituir outros documentos, começando com o título de eleitor. Espera-se que apenas o passaporte permaneça, pois é uma exigência de outros países.
E as medidas previstas para implantar o ICN e o DIN já começaram a ser adotadas, indicando a busca por resultados mais rápidos para a sociedade.
No início de novembro de 2017 foram editadas as primeiras resoluções do Comitê Gestor do ICN tratando de estabelecer o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) como o número público do ICN, o padrão biométrico a ser associado a cada ICN e as regras de interoperabilidade entre os sistemas que acessarão a base de dados do ICN.
Na prática, cada ICN-CPF terá vinculação aos respectivos dados biométricos (digitais de dez dedos e fotografia da face) de cada cidadão, com unicidade de registros e garantia de identificação inequívoca.
O Conselho Nacional de Justiça, também no mês de novembro, alterou as regras para a emissão de certidões de nascimento, casamento e óbito para determinar a inclusão obrigatória do CPF em todos esses documentos a partir de janeiro de 2018. Com essa medida, cada cidadão brasileiro passa a ter o ICN desde o nascimento, assegurando a implantação da identificação única e inequívoca desde já.
Nessa mesma linha, o TSE e secretarias de segurança já começaram a compartilhar suas bases de dados, como é o caso do Rio Grande do Sul e de Pernambuco, para identificar possíveis fraudes em eventuais coincidências biométricas (o mesmo indivíduo com diferentes nomes).
O mesmo processo, aliás, está sendo feito entre o TSE e o Denatran. Essas ações demonstram que o novo modelo do ICN é mais viável que o anterior e avança rapidamente para também facilitar o acesso aos serviços públicos, outro desafio monumental para a desburocratização.
É por isso que mandei colocar em um quadro o CNPJ do Ministério da MPE e fixei-o bem defronte à minha mesa de trabalho, afinal ele é emblemático. É o meu lembrete diário de que há males que vem para o bem.
IMAGEM: Thinkstock