Harmonização facial e desarmonização urbana
Por que o brasileiro se preocupa tanto com a estética corporal enquanto parece se importar tão pouco com a feiura das nossas cidades?
Acho que não é novidade para ninguém que o Brasil é um dos países onde mais são realizadas cirurgias plásticas no mundo. Sétimo mais populoso, com a nona maior economia do globo, em 2022 o país só ficou atrás dos Estados Unidos em número de cirurgias plásticas, segundo dados da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética. Em 2018 e 2019, de acordo com a mesma entidade, chegamos a ocupar a primeira posição – a qual, tenho certeza, não tardaremos a recuperar (vai, Brasil!).
A Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica estima que, em 2023, mais de 2 milhões de procedimentos devem ter sido realizados pelos brasileiros, sendo a lipoaspiração e o aumento da mama os dois mais procurados pelos pacientes.
Arriscaria dizer que não somente nas cirurgias plásticas, mas também nos procedimentos estéticos, de maneira geral, o Brasil deve ocupar uma posição bem destacada no ranking mundial. E, apesar de acompanhar pouco o tema, tenho notado que, entre os procedimentos não cirúrgicos, um dos que está mais em voga, ao menos entre as celebridades, é a tal da harmonização facial.
Confesso que não procurei me aprofundar muito a respeito dos detalhes do procedimento, mas, pelo pouco que pesquisei, deu para ver que seus resultados, em alguns casos, são, no mínimo, questionáveis, conforme notei na polêmica de 2023 envolvendo a cantora sertaneja Paula Fernandes.
Sim, verdade, beleza é um conceito subjetivo (ela está nos olhos de quem vê, já reza o clichê). Além disto, como liberal, vou sempre defender o direito das pessoas de fazerem o que bem entenderem com seus corpos.
Já não posso dizer a mesma coisa, porém, a respeito das edificações nas cidades, uma vez que, neste caso, se tratam de escolhas individuais que podem ter impacto negativo no bem-estar coletivo. E, enquanto os brasileiros parecem cada vez mais preocupados com a harmonização de seus rostos e corpos, o que mais observo ao caminhar por São Paulo é uma completa desarmonia entre as edificações.
E, quando falo em desarmonia, não me refiro à diferença de estilos arquitetônicos – que, por sinal, pode ser até desejável –, mas, sim, à falta de padrão na relação que edifícios vizinhos estabelecem entre si e com a rua. Em um mesmo quarteirão, por exemplo, é possível observar charmosas casinhas e predinhos construídos antes da década de 1970, colados uns nos outros e sem recuos em relação à calçada, ao lado de enormes torres da década de 1990 isoladas no lote, recuadas, desalinhadas e protegidas por grades; ou ao lado de muros altíssimos que cercam espaçosos condomínios-clube da década de 2010 a ocupar quase toda a quadra. Também não é incomum observamos prédios sem recuos laterais ao lado de prédios mais novos, com recuos, deixando empenas cegas que, infelizmente, nem sempre são preenchidas por grafites.
Ainda que haja uma ou outra edificação recente bonita, interessante, o que vemos no conjunto é uma verdadeira colcha de retalhos, ilhas completamente desconexas, prédios altos e enormes condomínios ensimesmados, erguidos a partir da década de 1970 sem qualquer sinal de esforço para estabelecer uma relação harmoniosa com os vizinhos e sem a menor preocupação com seu impacto no entorno.
Sim, também quando o assunto é cidade a questão da beleza é subjetiva, mas, assim como eu, há muita gente especializada no tema a defender que certa harmonia entre as edificações parece uma condição importante para a criação de ruas e avenidas mais bonitas e agradáveis.
No episódio do São Paulo nas Alturas em que elege a São Luís como a avenida mais bonita da cidade, por exemplo, Raul Juste Lores destaca nela características como simetria e continuidade entre os prédios, que não têm recuos frontais e laterais – e, consequentemente, não têm guaritas, muros ou grades, mas “olhos na rua”, além, é claro, de contar com prédios de arquitetura de qualidade, verdadeiros ícones paulistanos, que, por mais que se destaquem individualmente, não deixam de fazer parte de um todo simétrico e harmonioso.
O episódio do The School of Life sobre os aspectos fundamentais por trás das cidades bonitas e atraentes também destaca características como ordem, simetria e regularidade na tipologia – com variação nas fachadas, o que ele chamou de “complexidade organizada”, que vemos, por exemplo, na Avenida São Luís analisada por Lores.
Por fim, em artigo publicado no Caos Planejado, Antonhy Ling destaca que as cidades brasileiras são feias não exatamente [ou não apenas, no meu entender] por causa de um suposto mal gosto ou má fé de construtores e incorporadores, mas, sim – ou principalmente –, por causa de regras de planejamento urbano equivocadas, como as que estabeleceram recuos e vagas de garagem obrigatórios.
É possível tentar corrigir esses equívocos e promover maior harmonização das edificações nas nossas ruas e avenidas? Creio que sim, e um primeiro passo, no caso de novas construções, seria ajustar as leis de forma a tentar respeitar algumas das regras de ocupação que orientaram os imóveis vizinhos mais antigos – no caso, é claro, de terem sido construídos antes da imposição dos recuos –, garantindo-se, com isso, maior alinhamento dos edifícios. Incentivar fachadas ativas e áreas de fruição pública no lugar dos muros e grades também seria outro passo importante. Implantar muito verde, árvores nas calçadas, instalar portões mais bonitos e incentivar arte em muros e empenas cegas seria ainda uma forma de ao menos tentar maquiar a falta de continuidade das fachadas.