Biblioteca Mário de Andrade traz um novo olhar sobre o Centro de SP

Em entrevista ao Diário do Comércio, o diretor Jurandy Valença conta como tem transformado o local em um centro cultural, e sua relação com o movimento de revitalização da região

Mariana Missiaggia
17/Set/2024
  • btn-whatsapp
Biblioteca Mário de Andrade traz um novo olhar sobre o Centro de SP

A poucos meses de completar cem anos, em fevereiro de 2025, os planos para a Biblioteca Mário de Andrade (BMA), na Praça Dom José Gaspar, no Centro de São Paulo, parecem estar mais vivos do que nunca.

Sob a direção de Jurandy Valença desde outubro de 2021, o espaço ganhou novo mobiliário, expandiu a sua programação cultural, que passou a integrar o calendário oficial de eventos da capital, e prepara a abertura de um café no térreo do prédio com acesso para o jardim e a avenida São Luiz.

Com passagens por diversos órgãos de cultura, como o Centro Cultural São Paulo, o Centro Cultural Banco do Brasil e Oficina Oswald de Andrade, Valença é alagoano, deu início aos cursos de engenharia química e jornalismo, mas deixou para trás aos 21 anos, em 1990, quando se mudou para São Paulo movido pelo sonho de se aproximar da cronista Hilda Hilst, de quem foi o braço direito durante anos.

Em meio aos cargos que ocupou na gestão pública desde 2007, na Secretaria de Estado da Cultura, e na administração municipal a partir de 2017, chegou ao posto de diretor da Biblioteca Mário de Andrade em outubro de 2021. Frequentador assíduo do local, Valença pôs em prática uma série de iniciativas para atrair novos leitores e manter a relevância da biblioteca no cenário cultural ao apostar em uma grade de programação cultural diversa e gratuita.

Em 2023, o total de empréstimos de itens do acervo ultrapassou a marca de 36 mil livros, e mais de 66 mil consultas. Na última pesquisa feita em 2023 sobre o perfil de público da BMA, constatou-se um aumento de 1.500% no número de visitantes. 

Para além dos muros da Mário de Andrade, Valença se diz empenhado em fazer do espaço um objeto de conexão com o entorno e o movimento de revitalização do Centro, ao transformar a biblioteca em um centro cultural que alcance cada vez mais público para a região. Confira a entrevista:

Diário do Comércio - Você chegou à Mário de Andrade com o desejo de torná-la mais ativa em termos de programação e transformá-la em um centro cultural. Como isso tem acontecido?

Jurandy Valença - Entendendo que a biblioteca é atravessada por diferentes linguagens e claro, sem perder a literatura como eixo. O meu primeiro feito foi a gigantografia da fotógrafa Raquel Brust revestindo o brise-soleil (quebra-sol) da fachada da Hemeroteca (prédio anexo à biblioteca, na rua Dr. Bráulio Gomes, onde fica o acervo de jornais e revistas). São 400 tiras coladas uma a uma, em uma área de 530 m².

Quem vem à BMA adora fotografá-la, e fez do local um ponto turístico. Criamos muita variedade de programas e, de certa forma, uma acessibilidade, não somente física, mas de diversidade - e isso é fundamental, especialmente no Centro de SP. São aulas de ioga, filmes, festivais - tudo incorporado em uma verdadeira alquimia.

Mexer no mobiliário também foi fundamental. Levamos para o saguão e outras áreas comuns peças da (marca) Ovo, como o sofá paisagem, e poltronas 22, de Paulo Mendes da Rocha. Isso contribuiu para tirar o ar austero da biblioteca, onde há muito mármore, linhas retas, um pé direito altíssimo que pode transmitir certa autoridade.

Um lugar para ser frequentado precisa ter vida, tem que ser bonito, tem que ser agradável. O objetivo é mesmo transformar a biblioteca em um centro cultural, em que seja possível atrair pessoas de todas as faixas etárias e os mais diferentes interesses. Muitas pessoas que passam pela BMA nunca tinham entrado em uma livraria. 

Pesquisa feita em 2023 sobre o perfil de público da BMA constatou um aumento de 1.500% no número de visitantes

 

Em 2023, a biblioteca foi palco de 500 eventos, e teve mais de 36 mil empréstimos. O que tem sustentado esse movimento e como trabalham essa divulgação para alcançar novos públicos?

Vejo que muitas bibliotecas são encasteladas, e nós somos um equipamento cultural aberto com absolutamente toda a programação gratuita. Temos o Sons e Letras, por exemplo, que convida compositores da atualidade para dividir com o público seu processo de criação.

Em uma dessas ocasiões, já trouxemos a Mocidade Alegre, o rapper Rashid, que lotou o auditório de 'manos e manas' que ficaram impressionados com a beleza do lugar... Então, fazer essa ponte é importante. Em um desses ciclos tivemos na nossa plateia, por exemplo, o cantor Criolo, que chegou de forma espontânea. Digo que são ações disruptivas e inovadoras que trazem um público que seria pouco comum nesse espaço.

Somos muito ativos nas redes sociais (são 124 mil seguidores), e nossas postagens têm muita fluidez na forma de comunicar. Sediar eventos também abre novas frentes nesse sentido. Há três anos somos escolhidos por eventos importantes, como a feira de joalheria Brazil Jewelry Week (BJW), o Women's Music Events Awards (WME), uma premiação anual de música brasileira dedicada a empoderar mulheres - eventos que aconteciam em outros lugares, e hoje estão no Centro de São Paulo.

Desfiles de moda, locações para Netflix e HBO, além de um público novo, tudo isso contribui para o bom funcionamento da BMA. Como a biblioteca não pode receber nenhum pagamento em dinheiro, recebemos isso em infraestrutura. Temos uma lista de bens e serviços, como lâmpadas, mesa de som, impressora, itens que ajudam a BMA estar sempre impecável - são 78 banheiros, cinco mil lâmpadas, e tudo sempre funcionando na mais perfeita ordem.

Você já tem experiência com o Centro de SP, passou pelo CCBB, fez carreira no mercado de arte e passou por outros espaços. O que há de diferente na Mário de Andrade? O que a sua gestão trouxe e que ainda não havia sido feito?

O público. A BMA é a maior biblioteca pública da cidade e a segunda maior do país, superada apenas pela Biblioteca Nacional. E pouca gente sabe que o nosso acervo não se limita aos títulos literários. São cerca de 3 milhões de itens, entre livros, periódicos, mapas, microfilmes, jornais, cartões-postais e materiais audiovisuais. Há também um acervo imenso no que se refere ao design brasileiro, especialmente Carlos Motta e Jorge Zalszupin.

Fomos tirando muito do que estava escondido do público em salas fechadas, ampliando a atuação da biblioteca. A sala silenciosa, por exemplo, estava vazia e com paredes brancas, e é um óasis no Centro para quem precisa de espaço para trabalhar e pesquisar. Espalhamos mesas Pilon, projetadas na década de 1930, e luminárias exclusivas, e assim nasceu uma espécie de co-working. Isso tudo rodeado por obras de arte, como os desenhos de Ana Teixeira como uma verdadeira galeria de arte.

Abrimos o mirante, que dá vista para prédios icônicos, como o Copan, Louvre, conjunto Zarvos e a Hemeroteca. Por ali, colocamos mais móveis da Ovo, onde fazemos exibições de filmes, as pessoas tiram fotos, dão uma pausa, fazem aulas de ioga, e assim, os espaços vão sendo, de fato, ocupados e é isso que mantém qualquer lugar vivo.

Programação da Biblioteca passou a ocupar diferentes espaços da sede


Como você posiciona a Mário de Andrade nesse movimento de revitalização do Centro? O que você acredita que ainda pode ser feito pela região?

Considero nosso posicionamento importante e central no retorno de ocupação da região pós-pandemia. Estamos entre o metrô Anhangabaú e República, em uma área com muitas pessoas em situação de rua. É impossível não dialogar com essa realidade.

Trouxemos público, abraçamos a diversidade, pensamos em eventos que aproximem realidades, como a literatura negra, indígena a outras áreas do conhecimento. Por meio de colóquios, encontros em que são debatidos livros em que personagens possam ser relacionados com todos os tipos de identidade e gênero promovendo a bibliodiversidade. Também nos aproximamos muito da Secretaria de Direitos Humanos, uma parceria que acredito muito.

Não adianta ter programação gratuita e dizer que é acessível a todos, e achar que isso será uma atividade para um morador de rua que está sujo, com fome e se sentindo desumanizado. É preciso pensar em ações que conectem tudo isso. Também ganhamos o selo pró-equidade de gênero, um reconhecimento por termos 66% do quadro de servidores mulheres - e aí falo em cis, trans, de todos os gêneros. E penso que o caminho dessa revitalização seja bem por aí.

Como a biblioteca interage com o seu entorno, especialmente o comércio instalado por ali?

A biblioteca funciona das 9h às 21h, com atividades o tempo todo, e isso nos faz acompanhar tudo o que acontece em torno da BMA. Estamos vivendo a Praça, e sabemos do que ela precisa. Falo muito com os órgãos públicos, peço ajustes, tínhamos onze postes sem luz na Praça e que foram reparados.

Temos muito contato com a Guarda Civil Metropolitana (GCM), e sempre tem um carro deles parado em frente à biblioteca, as pessoas percebem que estar aqui é seguro. Aos finais de semana, tem a programação musical do bar Gaspar, os eventos da Galeria Metrópole, e tudo isso tem muito a ver com o que fomentamos. Viramos um ponto de referência.

Em 2022, sediamos a primeira grande reunião do grupo Centro Criativo, com representantes de negócios de todo o entorno alinhando ideias e possibilidades. Temos o projeto Mário na Praça, com atividades e shows. Minha gestão começou perto da segunda edição do Festival Mário de Andrade que, até então, se limitava aos muros do nosso prédio sede.

Mas, vi que precisávamos sair, então além da biblioteca e da Hemeroteca, fechamos o lado esquerdo da avenida São Luiz para uma feira de livros, ocupamos a Praça e interagimos com outros equipamentos culturais do Centro, como a Praça das Artes, o Sesc 24 de Maio, e criamos parcerias e um percurso para que a região toda fosse ocupada.

Essa segunda edição fez tanto sucesso que passamos a fazer parte do calendário macro da Secretaria Municipal de Cultura - o que faz com que o nosso evento passe a ter a mesma relevância e divulgação de uma Virada Cultural. Na terceira edição, trouxemos 35 mil pessoas para o Centro em um fim de semana.

Essa movimentação inevitavelmente mexe com quem está ao lado, temos em frente à biblioteca o restaurante Da Selva, que abriu em decorrência dessa efervescência. Uma biblioteca no século 21 tem que dialogar com a atualidade.

Como é a sua relação com o Centro? O que costuma fazer na região?

O Centro é a minha segunda casa. Tenho uma relação muito confortável com a região, me sinto à vontade e seguro. Além da minha rotina diária na BMA, vou muito ao Copan, frequento a Megafauna, compro queijos na Queijuz, estou sempre no Brechó Colmeia, no Largo do Arouche. Tenho um acervo enorme de moda e só compro em brechó, e hoje, o Centro é forte nisso.

Vou muito à Adega Central, na Galeria Sete de Abril, para comprar vinhos, frequento as banquinhas de frutas do entorno, meus sapatos sempre passam pelos engraxates da banca da Praça Dom Gaspar, é por ali que compro minhas velas e meus incensos. Enfim, o Centro se tornou um lugar vivo, vou muito na Ravil porque sou aficionado por canetas, e ter um comércio histórico dedicado a isso é algo raro, que só se vê no Centro mesmo.

O que esperar para 2025, ano em que a Biblioteca completa 100 anos? 

Vamos celebrar o ano todo. Teremos muitas exposições comemorativas, estamos produzindo um documentário dirigido pelo Kiko Goifman, algo bem afetivo com grandes nomes sendo entrevistados, bem como funcionários e frequentadores que têm alguma história vinculada à biblioteca.

Teremos a revista 78 sobre os cem anos da biblioteca, suplementos, e uma novidade muito especial que é a abertura de um café gerido por um angolano. Algo muito representativo, pois recebemos muitos imigrantes na biblioteca, que certamente se sentirão representados nessa iniciativa. Também acredito que a presença de uma cafeteria irá ajudar muito nessa ampliação de público que também queremos.

FOTOS: Divulgação

O Diário do Comércio permite a cópia e republicação deste conteúdo acompanhado do link original desta página.
Para mais detalhes, nosso contato é [email protected] .

 

Store in Store

Carga Pesada

Vídeos

Rodrigo Garcia, da Petina, explica a digitalização do comércio popular de São Paulo

Rodrigo Garcia, da Petina, explica a digitalização do comércio popular de São Paulo

Alexandra Casoni, da Flormel, detalha o mercado de doces saudáveis

Conversamos com Thaís Carballal, da Mooui, às vésperas da abertura de sua primeira loja física