Samuel Seibel, um livreiro 'ousado mas com os pés no chão'
Proprietário da Livraria da Vila, que recebeu o prêmio Proost Rodovalho, da ACSP, anda sempre na contramão de projeções pessimistas, seguindo sua visão peculiar de negócios, para abrir cada vez mais lojas físicas - e levar experiências diferenciadas aos fanáticos por bons livros
Jornalista de formação, empreendedor por afinidade - com os livros, especificamente. O brevíssimo resumo da trajetória do livreiro Samuel Seibel, 69, não dá conta de medir suas realizações nos últimos 21 anos à frente da Livraria da Vila, marca que nasceu com a loja da Vila Madalena, há 38 anos.
Misturando "ousadia com pé no chão", como gosta de falar, ele procura pôr em prática sua visão peculiar e apurada dos negócios para andar na contramão das projeções pessimistas nesse mercado - e assim, abrir cada vez mais lojas físicas. Tanto que, na pandemia, e depois, aumentou o número de unidades de 10 para 18, e deve chegar a 20 em 2024, com as lojas de Curitiba e Brasília.
A ideia é levar experiências cada vez mais diferenciadas para os aficionados por bons livros, seja ele o leitor tradicional ou o tiktoker. Mas também ir além dos pontos nobres, onde suas lojas estão localizadas hoje, para disseminar a leitura e a possibilidade de fazer negócios nas periferias e comunidades.
Assim como outros livreiros, Seibel diz ter passado pela ameaça de "fim do livro físico", em um cenário que levou o mercado editorial a registrar seguidas quedas, e grandes redes de livrarias a quebrarem. Mas ainda se apoia em um certo grau de otimismo - e muitas atrações, como palestras, debates, pocket shows, temporadas teatrais e um acervo de mais de 200 mil livros - para atrair leitores para suas lojas.
"Tem que acreditar no negócio, arregaçar as mangas e trabalhar muito. Não tem milagre, no varejo principalmente. E ficar muito atento a tudo, pensando e fazendo as coisas por causa do cliente", diz. "O ser humano é sociável, quer se encontrar, vir, bater o olho nas novidades, ter experiência. Então, talvez essa seja a explicação do porquê as livrarias estão aí, firmes", completa o escolhido para receber o prêmio de empreendedorismo Antônio Proost Rodovalho, na ocasião do aniversário de 129 anos da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), na última quinta-feira (07).
Em entrevista ao Diário do Comércio, Seibel fala sobre o mercado em geral, a nova safra de leitores e escritores oriunda da internet e explica por que apostar em livro físico ainda é um negócio que vale a pena. Confira a entrevista:
DC - Na pandemia e depois, muita gente fechou lojas, a Amazon avançou e tomou conta de tudo, houve os problemas com grandes redes de livrarias... Mas, ao contrário, vocês abriram mais lojas físicas. Quais as perspectivas da Livraria da Vila hoje?
Seibel - Não, eu não acho que a Amazon está tomando conta de tudo. Obviamente ela é um player importante, competente, mas, para nossa grata surpresa, as pessoas vêm demonstrando que, em primeiro lugar, livro é uma coisa muito bem apreciada, valorizada, e livraria física também. Mesmo quando todo mundo enxergava que seria um caminho diferente.
Então, perspectivas não temos, mas, concretamente, temos o que realizar em 2024, com a abertura de lojas. Pelo ponto de vista do negócio, de lojas físicas ainda, elas têm um longo caminho pela frente. E não é só em livraria.
Eu acho que se tem uma visão real, correta, porém precipitada do setor. Quando se vê um certo movimento de 'poxa, está fechando' - e, no caso, foram as duas maiores redes de livrarias (Saraiva e Cultura) -, incrivelmente não foi por falta de clientes.
Isso deixa a situação mais animadora. Quando você está num nicho e acontece, por alguma razão, de o produto virar obsoleto, as pessoas não querem, né? Mas esse não é o caso do livro.
Isso explica por que vocês até entregaram livros por delivery na pandemia?
É legal, você quer que a pessoa tenha interesse, né? Todos nós, livreiros, no começo, tivemos nossos sites, nossos e-commerces, mas precisamos arrumar outros jeitos de vender. Voltando, não é que um grande player detém o mercado, mas a verdade é que ele realmente cresceu.
Eu acho que existe até um fenômeno secundário a tudo isso, que quando acontece de alguém aparecer (como a Amazon), acaba colaborando com a difusão da leitura. E também aparece um público que talvez não fosse frequentador de livraria, mas descobriu uma facilidade para comprar livros.
No fundo, então dá para dizer que essas gigantes não foram tão 'vilãs' assim?
Não é uma questão de herói ou vilão, eu acho que por isso que falei do efeito secundário. O crescimento delas não é um efeito desejado para esse empreendedor, o pequeno e médio. Todo mundo que está nesse mercado, no varejo, quer e precisa vender. Por mais glamouroso que seja o produto, por mais importante que seja para a formação, também é sobre como você fecha as contas no final, para a sua viabilidade financeira ser sustentável e poder crescer. E para isso precisa ter margens.
É aquilo que você falou, há um player com poderio econômico desproporcional aos outros, e isso pode causar um mal enorme para o mercado. Mas estamos falando de um produto relativamente competitivo, que custa cerca de R$ 40, R$ 50 por livro. O infantil R$ 30, os maiores R$ 60... Se você falar 'vou ler um livro por ano', vai gastar só R$ 50. Não dá nem para comparar a uma ida ao cinema sem pipoca.
O livro é um produto em si bastante democrático, mas a discussão é outra, no Brasil é falar em desigualdade e oportunidade de outras camadas da população. Eles não vão deixar de comprar feijão para comprar um livro, e espero que não façam isso mesmo, comida para a família, para os filhos, é muito mais importante. Mas o livro passa a ter importância à medida que ele ajuda as pessoas de outra forma.
É muitas vezes um bálsamo para a alma, uma válvula de escape em qualquer assunto: aventura, religião, ficção, quadrinhos para crianças, para adultos... e vai embora. A importância do livro é muito isso - sem falar do fator educacional, claro.
Falou-se muito que a tendência era que o livro físico iria acabar, mas estão aí as Bienais batendo recordes, mais de 660 mil visitantes em 2023... E uma nova safra de autores atraindo público, como influencers e tiktokers. Como o senhor enxerga esse movimento?
Não só autores, mas aconteceu uma coisa bacana além disso: os jovens estão escrevendo para outros jovens ligados na internet. É uma decorrência disso. Não é o jovem romântico que não aderiu à tecnologia, mas um adepto da tecnologia. O efeito Tik Tok é muito bom porque ajudou demais e continua ajudando a divulgar autores que não são dessa geração, que vão formando clubes, indicações.
Eles estão fazendo um trabalho impressionante, que alimentou essa chama de um jeito muito forte. É muito bacana: o que aconteceu na Bienal e em outros eventos literários é uma coisa que não via há anos.
É jovem adolescente ou jovem adulto com livro físico, saiu até matéria disso, sempre carregando um, com a capa à mostra... Aquilo é efeito Tik Tok sem dúvida nenhuma, é justamente esse mercado que nasceu e se criou por conta deles, e não por influência dos pais ou professores. Eles descobriram como é importante ter um bom livro para ler. E liam, e continuam a ler.. e isso é muito legal.
Pensando nisso, e no final das contas, o Kindle (livro digital da Amazon) pegou?
Vendemos por muitos anos aqui, não só na loja física, mas também na internet. Quando chegou no Brasil vieram conversar com a gente, e relutamos muito. E vimos grupos importantes de livrarias com seus leitores digitais, e aí em uma das negociações a gente pediu uma condição: todo livro baixado pelo Kindle, e comprado com a gente, teríamos uma pequena participação percentual. Foi uma discussão longa, pois não faziam isso em nenhum lugar. Mas acharam interessante, aceitaram e fizemos por muitos anos.
Também queria demonstrar que, como livraria física, não estávamos tapando o Sol com a peneira, nem negando a existência de uma nova tecnologia, com o nosso objetivo de vender. Para nossa surpresa e do mundo inteiro, não só do Brasil, o livro digital não teve o mesmo alcance, não é mais a mesma coisa.
Poderia ter uma adesão significativa nessa história, tem 10 anos a chegada do livro digital, mas não pegou. Se pesquisar um pouco, a tecnologia ainda existe, mas estou falando que 95% da preferência continuam no livro físico. Nós, livreiros, passamos pela ameaça de acabar o livro físico. A projeção do que poderia acontecer foi desastrosa. Mas o ser humano é sociável, quer se encontrar, vir, bater o olho nas novidades, ter experiência. Então, talvez essa seja a explicação do porquê as livrarias estão aí, firmes.
Tem segredo para manter um negócio bem-sucedido e em expansão mesmo na crise?
Se tem, eu desconheço, gostaria que alguém me falasse, viu... Acho que não é questão de expandir, é questão de sobrevivência. Tenho um filho que é o CEO (Flávio), uma equipe muito boa, muito próxima, parceira. E até uns três ou quatro anos atrás, nós não demitimos ninguém.
Tenho uma frase, que falo meio brincando: ter ousadia com pé no chão. Ela norteou um pouco a tomada de decisão na pandemia. Naquele momento, foi freio de mão puxado, afinal, ficamos fechados cinco meses. As decisões tomadas pelo governo em 2020 foram muito acertadas, ajudaram a viabilizar os negócios, poder flexibilizar horário, pagamento... É o que fez continuar, manter todos no mesmo barco, sem problema com funcionário antes nem depois da pandemia, tentamos ser muito corretos no trato.
E acho que é por um grau forte de otimismo, e não estou enrolando, é otimismo baseado em nada. Mas essa percepção do povo falando 'isso vai passar', eu tentava traduzir na prática, nem imaginei que teria vacina tão rápido. E partimos do princípio de sairmos mais fortalecidos quando tudo passasse.
Daí vem essa decisão de abrir mais lojas?
Isso. Começamos em 2019, um ano antes da pandemia, tínhamos 10 lojas e agora 18. Muitos pensaram: que loucura é essa? Mas é a ousadia com pé no chão, oportunidades que surgiram para a gente, recebemos convites de locais fundamentais para a gente estar, como os shoppings Morumbi, Eldorado, Center Norte, JK, que tem uma unidade e uma loja-conceito de livros de arte, até 30/12.
Aliás, não gosto muito desses nomes que dão no varejo. Fiquei 20 anos na Leo Madeiras (empresa da família de Seibel) e, para falar a verdade, não sei se existe (a loja-conceito). A conta que eu faço de uma loja conceito é quanto vai vender, o ponto em que vai estar, se vai estar no vermelho ou não, a fixação de margem.. Para mim é livro com a razão principal, que é o negócio ter resultado. Lojas de livros de arte têm público ou não, posso até me enganar nessa análise.
Conseguimos, por exemplo, ter vendas ali que jamais teríamos em outro lugar, que são livros da Ferrari exclusivos, de colecionador, livros de R$ 70 mil. Trouxemos três, e há pouco recebi a informação de que o terceiro foi vendido. E não vamos trazer mais, vamos respirar um pouquinho. De novo, é ousadia com pé no chão, um exemplo do que quero dizer, tentando responder sua pergunta sobre o segredo.
Dá para aplicar sempre esse 'grau forte de otimismo' no dia a dia dos negócios?
Quando eu falo em otimismo, é acreditar no negócio, arregaçar as mangas, e muito trabalho. Não tem milagre, no varejo principalmente. Tem que ficar muito atento a tudo e realmente pensando e fazendo as coisas por causa do cliente. Claro que tem toda uma identificação do negócio. Comecei aqui pela paixão pelos livros, né, sou varejista há 40 anos, mas fui jornalista por quase 10. No fundo, juntei minhas bagagens, a do lado um pouco mais intelectual, mais cultural, com o lado do negócio empreendedor.
Não é só trabalhar, é tocar o negócio. E ser otimista. Não é fácil, realmente é difícil, o varejo é diferente da indústria. No varejo você abre e fecha as portas, literalmente, todos os dias. Só não abre em 25 de dezembro e 1° de janeiro, apesar de ter shopping que abre, então vamos ter que abrir.
No domingo eu adoraria que viesse uma lei - e até brinco que a ACSP poderia encaminhar esse movimento - falando que o varejo fecha, ninguém abre. Eu não abria de domingo, mas eu passei a abrir porque o próprio consumidor vinha procurar. Aguentei a experiência, e o domingo passou a ser o segundo melhor dia da semana em vendas. É um horário curtíssimo, muito menos horas. Mas tem movimento: eu vejo a felicidade das pessoas por sair com as famílias, com as crianças, e isso é muito legal.
Todas as suas lojas estão em locais considerados nobres (shoppings de luxo ou lojas de rua em Moema ou Alameda Lorena). E na periferia, longe dos grandes centros, vocês pensam em ir?
Boa pergunta. Muito interessante. Achei legal porque eu penso nisso há muitos anos, já tentei algumas vezes para poder viabilizar. Mas não é fácil. Eu gostaria inclusive de algum lugar em favela, comunidades. Já conversei com um líder, super conhecido, de favela em São Paulo. Mas como faz? Monta onde? Porque a minha ideia seria justamente essa, levar para a periferia para ter um efeito multiplicador.
Tipo um modelo replicável, envolvendo a comunidade?
Totalmente envolvendo a comunidade. Então, para isso o local precisaria estar engajado. Porque vai ser de algum dono, ou da comunidade mesmo. Tem que fazer um sistema de compra, tem que ter uma parceria no sistema bancário, com um ou dois bancos, com meios de pagamento. Pensei até em um sistema de conversão, com valor de troca para a compra de outro livro, tentando já fazer alguma coisa.
A gente faz muito evento, feira. Quando tem evento literário na favela, tem debate, escritores, muitos leitores, mais do que as pessoas imaginam. Talvez mais. Eu gostaria de pôr no ar, mas precisa de apoio, parceria. A ideia está no radar faz tempo, e até conversei com dois escritores, mas não consegui fechar.
Porque não é para ser uma coisa de caráter filantrópico, senão a ideia ia se perder. É para gerar renda mesmo. As pessoas que vão tocar têm que tornar aquilo um negócio lucrativo para beneficiar não só a elas, mas a comunidade. Tenho essa vontade há pelo menos uns 10 anos. Mas um dia sai.
O capital de vocês é próprio ou tem algum investidor? Se não, ninguém sondou vocês para uma possível fusão ou aquisição, para fazer algum aporte?
É próprio. Eu diria, assim de bate pronto, o famoso 'sem pensar muito', que num primeiro momento seria uma coisa descartada, não teria a menor possibilidade de um negócio desse. Porque os caras só querem dinheiro. Eu não tenho problema com quem queira ganhar dinheiro: se está no mundo financeiro, em banco de investimento, em um fundo, acho que o cara tem que pensar em como é que vai ganhar.
Até existem vários fundos com propósito de sustentabilidade, propósito de desenvolver áreas mais carentes... Mas agora não. Pode ser que um dia a gente realmente precise, quando tivermos um projeto de chegar a 100 lojas... aí sim. Mas, por enquanto, não temos essa ambição nem vontade.
Qual a importância de receber o prêmio da ACSP em reconhecimento a seu empreendedorismo?
Quando eu vi o Alex Allard (idealizador da Cidade Matarazzo e premiado em 2022), um arquiteto, eu achei interessante. Porque eu tinha visto ali alguns nomes que receberam e aparece o (empresário e filantropo) Antônio Ermírio, o grande José Mindlin (bibliófilo)... Aí eu falei: o que eu estou fazendo do lado do Zé Mindlin? E, citando de novo o Alex, que está fazendo um empreendimento nunca visto, que não é só uma revitalização, ele tem uma visão muito peculiar daquela região, é realmente impressionante.
Por isso, eu acho que é um reconhecimento ao nosso trabalho. Na pandemia não demitimos nenhum funcionário, a empresa está sólida, com essas perspectivas concretas de aberturas de loja. Ou seja, está indo para a frente. Você pensa: alguém viu a gente de alguma maneira? Acho que estamos no caminho certo. E, de novo, é a tal da ousadia com o pé no chão. Eu quero dormir bem à noite, nós somos uma empresa com zero débitos. É interessante hoje, no Brasil de 2024, valorizar o varejo, enxergar no varejo algo digno, ainda mais no ramo de livrarias.
Então eu recebo dessa forma: o nosso trabalho na Livraria da Vila está sendo bem feito, está sendo visto. O prêmio é uma decorrência, e isso é muito bom.
SOBRE O PRÊMIO Criado em 1992 pela ACSP a pedido da Companhia Melhoramentos, o Prêmio Antônio Proost Rodovalho reconhece iniciativas de empresários que envolvem soluções criativas para problemas econômicos, sociais, políticos e relacionados ao meio ambiente. O prêmio recebe o nome do fundador da Melhoramentos e da ACSP. A homenagem ganhou a forma de um troféu que reproduz o busto do empreendedor Rodovalho, feito pelo escultor Luis Morrone. |
IMAGEM: César Bruneli