Nos falta vergonha na cara
Em meio aos milhões de necessitados, o desvio de caráter e a falta de civilidade de parte da população levou algumas dezenas de milhares de “espertos” a requerer (e receberam) esse auxílio que tem sido a possibilidade mínima de sustento dos efetivamente pobres.
...nesta terra nenhum homem é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular...
O brasileiro, em geral, antes e acima de tudo, precisa tomar urgentemente um banho de civilização. O que está acontecendo na questão do auxílio emergencial para pessoas necessitadas é uma vergonha. Fraude em cima de fraude.
Recursos do tesouro nacional, escassos, faltantes (apesar da brutal arrecadação, pois a maior parte vai para custear folha de pagamento dos serviços públicos indecentes e havia/há desvios de corrupção) foram destinados emergencialmente às camadas da população que durante a pandemia ficaram privadas de mínimo poder de compra. Aplausos.
Em meio aos milhões de necessitados, o desvio de caráter e a falta de civilidade de parte da população levou algumas dezenas de milhares de “espertos” a requerer (e receberam) esse auxílio que tem sido a possibilidade mínima de sustento dos efetivamente pobres.
Vergonha. Até dentro do próprio Palácio do Planalto houve advertência generalizada da impropriedade da requisição. Filhos, parentes, pessoas próximas a político, parlamentares e até filho de Willian Bonner, e, certamente, muitos outros que não chegaram ao conhecimento público.
É uma verdadeira “expropriação” de dinheiro público por quem tem (e como tem) condições de vida de elevado
padrão e subtraem dos pobres recursos públicos que, para muitos, é a única forma de sobrevivência. Vergonha.
Isso é parte do que defende há décadas. O Brasil só vai sair de seu atoleiro de mediocridade e corrupção alarmante quando o país se dedicar a um projeto nacional de educação, conhecimento, civilidade, suprapartidário, acima de governos, como proposta nacional de estado.
É quase utópico. A Coréia do Sul conseguiu, para ficar num único exemplo. Em 25 anos, saltou de um país atrasado como o Brasil para uma potência tecnológica, industrial, econômica. Pois investiu maciçamente, sem viés ideológico que não a liberdade em todos os seus sentidos, na educação de seu povo.
Por mais que alguns torçam o nariz, somos um país ignorante, semialfabetizado, onde ainda prevalece a lei da vantagem individual em tudo e o salve-se quem puder em cima do dinheiro público.
Esse é o terreno fértil (e por isso, não se avança) para políticos, governantes, oligarquias, toda sorte de poder dominante, até opróprio estado brasileiro em suas instituições privilegiadas e viciadas no tesouro público. Adubados por vaidade, corrupção, e uma profunda dose de demagogia.
Tudo se faz para manter privilégios e o discurso é em que o mal feito é para o bem dos mais necessitados. Exemplos não faltam. Basta olhar, ainda agora, ainda mais agora, para Brasília e estrados brasileiros.
Somos incivilizados. É só olhar em nosso redor. Cada um de nós.
A “cultura” é de esperar do poder público solução para cada um. Urge que cada um faça sua parte para o bem de todos. É algo que precisa vencer o círculo vicioso que vem de séculos, como mostro abaixo na palavra do Frei Vicente de Salvador.
Somente com a educação, a alfabetização efetiva e o conhecimento, os milhões de brasileiros, incluo todos, cada um de nós, poderá discernir e entender a necessidade de, dentro das liberdades públicas, econômicas e de expressão de pensamento e opinião, o país se desenvolverá e todos terão melhor qualidade de vida.
O quadro de hoje é desolador. Estamos, todos, sobrevivendo. E, ainda há, uma parcela de atores da cena política, artística, econômica, diria, geral, que prefere que tudo fique como está ou piore, por egoístas interesses pessoas de poder, dinheiro e dominação. Nessas horas, dá vergonha sim de ser brasileiro.
Em meu livro “1500, A Grande Viagem”, romance de ficção histórica sobre a viagem de Cabral, cujas primeira e segunda edições são de 1994, transcrevi no final da obra uma declaração do Frei Vicente de Salvador, de 20 de dezembro de 1627. Chamei de “Reflexão de 4 Séculos”.
Mais um quarto de século se passou até hoje, e o Brasil segue sendo o que o religioso escreveu:
“...nem depois da morte de el-rei Dom João Terceiro, que o mandou povoar e soube estimá-lo, houve outro que dele curasse, senão para colher as suas rendas e direitos. E deste mesmo modo se hão os povoadores, os quais, por mais arraigados na terra estejam, tudo pretendem levar a Portugal.
E isto não tem só os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída.
Donde nasce também que nesta terra nenhum homem é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular. É assim que estando as casas dos ricos (ainda que seja à custa alheia, pois muito devem o quanto
têm) providas de todo necessário, nas vilas muitas vezes não se acham coisa de venda.
Pois o que é fontes, pontes, caminhos e outras coisas públicas, é uma piedade, porque atendo-se uns aos outros, nenhum as faz, ainda que bebam água suja e se molhem ao passar, e tudo isto vem de não tratarem do que cá há de ficar, senão do que hão de levar para o reino.
Estas são as razões por que alguns, com muita razão, dizem que não permanece o Brasil, nem vai em crescimento; e a estas podem ajuntar a de lhe haverem chamado estado do Brasil, tirando-lhe o de Santa Cruz, com que pudera ser estado e ter estabilidade e firmeza...”
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