Na terra da 'Lei de Gerson'
Da antiga propaganda de cigarro às tubaínas, a cultura do marketing retrata um país prisioneiro de um passado barroquista; leia trecho do recém-lançado "Destorcer o Brasil", de Jorge Maranhão


A retorção é o maior atributo de uma estratégia de marketing. Pois, na linha de que nada se cria, tudo se copia, o marketing não é absolutamente uma cópia de um original havido em algum tempo ou lugar de uma cultura superior.
O que seria uma torção; quando a retorção não passa de um mero pastiche da torção original de uma verdadeira paródia burlesca.
O refrigerante Mineirinho não é a cópia fiel da Coca-Cola, senão seria contrafação, crime previsto em lei, mas sua reinvenção com sabor autóctone e mais açúcar, naturalmente, pois somos latinos.
Ou, como as tubaínas, os genéricos de refrigerantes, meras essências de sabores gaseificados artificialmente. O artifício do artifício, mera imitação, cópia deslavada. E de pior qualidade, sempre.
Como o café torrado com cevada misturada quando o governo intervia de maneira espúria no preço do café moído, com o falso pretexto de que café deveria constar na cesta básica de alimentos dos brasileiros de baixo poder aquisitivo.
Sem falar na retorção do biscoito Extra, versão mais barata do biscoito Globo, quando o jornal lançou sua versão popular mais barata com o mesmo nome. A assunção deslavada da cópia pelo barroco gosto de copiar a cópia e iludir, ilusionar, iluminar.
Iluminar a ponto de nos ofuscar a visão que deveria elucidar sobre os enganos da vida. Como nenhum baile da nobreza vienense, já em decadência em fins do século XIX, desconhecia que os cristais de Herr Strass, multifacetados e laminados dos cristais de rocha retirados do Reno, podiam reluzir tanto quanto os diamantes vindos da longínqua Diamantina de Minas Gerais, mas incomparavelmente mais baratos.
A diferença era saber distinguir entre o falso e o verdadeiro, atributo mais da razão clássica do que da emoção barroca. Como o bandeirante caçador de esmeraldas, Fernão Dias Paes Leme, que morreu nos sertões de Minas, agarrado a uma bolsa cheia de turmalinas que pensava serem de fato esmeraldas. Mais uma vez, apenas retorcemos o que já vinha torcido da metrópole. A paródia que virou pastiche
AMBÍGUO PÃO DE QUEIJO
O pão de queijo real é divino. Mas também infernal em sua simbologia. Onde se viu tamanho engenho barroco? Amalgamar a massa do queijo junto com a massa do pão e botar para assar em bolinhas no tabuleiro quente.
Porque nada em nossa cultura torcida e retorcida é pão-pão, queijo-queijo, quando pode ser esta deliciosa invenção de juntar os dois, como vários outros casais culinários, como baião de dois, Romeu e Julieta, carne seca mais jerimum.
O pão europeu jamais ousou tanto! Se tinha de encher com algo estranho ao trigo, era no máximo alguns outros grãos de cereais sem moer, como centeio, aveia ou linhaça.
Alguns condimentos como orégano, alho ou cebola. Ou algumas nozes moídas grosso modo, como castanha, macadâmia ou amêndoas. Ou mesmo algumas frutas cristalizadas nas festas natalinas. Mas juntar queijo na massa de trigo?! É demais! Para não falar do que se desdobrou a orgia.
Botam carne seca, linguiça e presunto. As variações e contrapontos não param! Verdadeira profanação do pão como símbolo maior do cristianismo!
O ponto máximo da invenção e misturação, da qual começamos a enjoar. Porque levado o barroco das artes para o campo dos costumes políticos, como temos visto, não tem dado certo misturar público com privado, justiça com vingança, ordem com liberdade, direito com deveres, e por aí vai!
CAIPIRINHA, INSUSPEITA LIMONADA
Como a maioria dos coquetéis, ou rabo de galo (de cocktails), como se diz no interior, as caipirinhas e batidas são a versão brasileira de drinks com mistura de uma ou duas bebidas, algum sumo de fruta e um vermute ou licor amargo variado.
Sua origem vem da aparência mesma das cores do rabo de um galo, vermelho, carmim, roxo, azul, creme, etc., dependendo do tipo de uísque e vermutes utilizados na mistura.
O fato é que a arte de misturar bebidas vem da Antiguidade clássica com a tradição do hidromel já presente na literatura grega, romana e medieval.
Mas a mistura brasileira tem uma origem peculiar. A caipirinha se tratava em sua origem de uma receita de remédio caseiro caipira para combater as várias epidemias de gripes em voga desde o século XIX.
Compunha-se de um suco de limão, com alho e aguardente batidos com mel para minorar a acidez do limão e a ardência do alho.
Conta-se que, um dia, na falta de mel, o caipira adicionou açúcar, e na falta de alho, dobrou a dose de cachaça. Como ficou mais gostosa a receita sem alho, e o caipira sarou, logo se espalhou como uma bebida social no lugar da cachaça pura.
Afinal, caipira não é bobo, podia agora tomar a sua cachaça em paz e disfarçada de suco de limão. Outrora purinha, se torcia e retorcia a cachaça em insuspeita limonada.
O X-TUDO E O DOGÃO
O x-tudo e o dogão, ou “podrão” para alguns fregueses, são versões aumentativas de seus equivalentes sanduíches americanos. Só que grafando cheese com um xis, uma vez que se tem tudo, e multiplicado, não precisa dizer que tem queijo também.
Os dois sandubas nacionais têm de tudo. Já se acordou, inclusive, que, para compensar seu imaginário de escassez, o brasileiro adora superlativos.
Coisa antiga, vem do desertão, mengão, fuscão, batidão, jogão e outros ãos. Mais uma prova de sua alma exuberante, hiperbólica e barroca.
Se na língua culta o diminutivo é preferencialmente expressão de afeto, por que não retorcer o idioma e exprimir igual carinho com o aumentativo também? Certo, amigão? O que exprime abundância do muito amigo, amigo de sobra.
É o caso da reinvenção barroquista do egg cheeseburger. Acrescente-se, além de hambúrguer, queijo e ovo, mais alface, batata frita, ovo, ervilha, milho, maionese, alface, tomate, cebola e pão de gergelim, temos o x-tudo e, em algumas barraquinhas dos centros urbanos, o x-tudão.
Como no dogão, um hot dog mais do que turbinado, acrescente o que você quiser, até esboroar pelas beiras das fatias de pão. É a glória da apoteose da ascensão de Nossa Senhora pintada pelo Mestre Ataíde no forro da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto. O céu é o limite e transborda de anjos e santos por todos os lados, como no ki-dogão de Nilópolis. A felicidade é o exagero.
O RESTAURANTE A QUILO
Se o restaurante à la carte é clássico, com proposta culinária definida, clara procedência cultural da cozinha, simples e objetivo na apresentação do serviço, o restaurante a quilo é barroco em sua multiplicidade cultural, abundância e variedade de pratos, profusão de culinárias das mais diferentes origens.
Uma hipérbole de cardápios apresentados em grande quantidade de pratos frios e quentes, mas misturando-os num empilhamento Kitsch de culinárias das mais variadas origens culturais.
Para além da racionalidade clássica de só pagar aquilo que consumiu, o que é vantagem para a casa e para o cliente, trata-se de uma invenção do sentimento de escassez brasileiro, cujo pragmatismo se espalhou pelo resto do mundo.
E aí, vale tudo na deglutição cultural antropófaga: entradinhas de sushis japoneses, seguidos de uma pasta italiana, mais um segundo prato de churrasco argentino, seguido de um vatapá afro-baiano e, para arrematar, un vrai vol-au-vent français.
Sobremesa: um prato sortido de doces de ovos portugueses, uma canjica de milho, pé de moleque e uma paglia italiana. Que tal? Não gostou? Você é um purista, um elitista!
O RUMOROSO CASO DO VILA RICA
Quem não se lembra do comercial do cigarro Vila Rica, lançado em 1976, onde o famoso jogador Gérson argumentava: “Gosto de levar vantagem em tudo, certo”?
A expressão colou quando, anos depois, o psicanalista Jurandir Freire, entrevistado pelo jornalista Maurício Dias, se referiu à expressão “Lei de Gérson”, para se referir à síndrome brasileira de querer levar vantagem em tudo, no sentido evidente de malandragem, jeitinho, a cultura barroquista da simulação/dissimulação tipicamente brasileira.
Por mais que o jogador Gérson tenha se declarado arrependido por ter associado sua imagem ao anúncio, de nada adiantou, uma vez que a argumentação publicitária, como estudo no meu livro A arte da publicidade, da mesma época (1978), tem plena consciência de que o significado predominante de uma chamada, jargão ou dito, é mais da demanda do público do que da intenção do emissor.
Pois ainda nos anos 1980 e 1990, o que se buscava no debate público brasileiro era o questionamento de qualquer comportamento pouco ético como traço de identidade da própria cultura brasileira.
Daí o conteúdo da chamada do publicitário era menos importante do que o rótulo para nominar tal demanda no espaço público.
E foi criada a expressão “Lei de Gérson” pelo psicanalista interpretando a fala do publicitário, no caso, um dos melhores criadores da época, e diretor de criação da Caio Domingues & Associados, José Monserrat Filho.
Na época, argumentou o publicitário que o público fizera uma interpretação errônea do seu vídeo:
“Houve um erro de interpretação, o pessoal começou a entender como ser malandro. No segundo anúncio dizíamos: levar vantagem não é passar ninguém para trás, é chegar na frente, mas essa frase não ficou. A sabedoria popular usa o que lhe interessa”.
Em que pesem as explicações do publicitário e do psicanalista, ninguém me convence que o imaginário social brasileiro ainda hoje se justifica pelo episódio da Inconfidência Mineira, onde pobres coitados como o alferes e alguns poetas e causídicos “pagaram o pato” pela mão de ferro da Coroa na repressão dos inconfidentes.
Foi exatamente nos anos 1980 que a mídia começou a divulgar notícias sobre corrupção na política brasileira e a população começou a utilizar a expressão “Lei de Gérson”.
Quem acabou enforcado foi um alferes, e outros militares, cônegos e até estudantes tiveram a pena capital comutada em degredo para a África. Isto em Vila Rica, não o cigarro da propaganda, certo? Mas a cidade da conjuração.
Como cultura é um acervo simbólico de visões de mundo e estilos sedimentados no imaginário de um povo, reafirmo que em nosso país este acervo é um arranjo dominantemente barroquista.
Por isso estou convencido de que, mais do que nossas individuais decisões ou mesmo intenções de ver, crer, pensar, sentir e agir, acabamos sempre sobre determinados por este modo peculiar de como ver, crer, pensar, sentir e agir.
FOTO: Reprodução