Estado Islâmico distribui franquias do terror
Novo modelo de terrorismo dispensa células e hierarquia. Cada grupo ou indivíduo pode cometer atentados em nome da "marca" da organização criminosa
Na manhã desta terça-feira (26/07), dois homens armados irromperam na pequena igreja de Saint-Etienne-du-Rouvray, na região francesa da Normandia, e decapitaram o padre Jacques Hamel, de 84 anos, enquanto ele rezava a missa.
Duas horas depois, o presidente da França, François Hollande, confirmava que os assassinos integravam o grupo terrorista Estado Islâmico.
Foi o quinto atentado deste ano em território francês. No mais dramático, na noite de 14 de julho, um terrorista ao volante de um caminhão atropelou e matou 84 pessoas em Nice. As vítimas compunham a multidão que assistia, em frente à praia, à queima de fogos que comemorava mais um aniversário da Revolução Francesa.
Na Alemanha, foram ao menos três atentados no último mês. Um descendente de iranianos de 19 anos matou nove num centro comercial de Munique, um afegão de 17 anos feriu cinco a machadadas, dentro de um trem, e um sírio de 27 anos feriu 15 num festival de música da cidade bávara de Ausbach.
Bem mais trágico foi o atentado de 12 de junho na cidade norte-americana de Orlando, quando o terrorista Omar Mateen, de 29 anos, matou 49 e feriu outros 53 frequentadores de um clube noturno com clientela gay.
Com o chamariz dos Jogos Olímpicos, o Brasil entrou na mira dos terroristas, mas por enquanto sem derramamento de sangue. Foi na última quinta-feira (21/07), quando a Polícia Federal prendeu os dez iniciais de um grupo de 12 simpatizantes do Estado Islâmico, que se articulavam pela internet.
Quatro dias depois, o ministro da Justiça, Alexandre de Morais, declarou não haver nenhum outro grupo a ser desmantelado. Afirmou que a polícia acompanha uma centena de pessoas virtualmente perigosas, mas sem que elas manifestem o propósito de partir para a ação.
TERRORISMO IMPERMEÁVEL À INFILTRAÇÃO
O ministro deve ter seus motivos para tranquilizar a população. Mas os terroristas que entraram em ação nos Estados Unidos, na França e na Alemanha permaneciam perigosamente invisíveis aos radares dos órgãos de segurança.
Em verdade, invisíveis todos são. Mas o novo modelo de atuação criminosa que o Estado Islâmico introduziu acabou por pegar de surpresa os serviços ocidentais de informação.
Eles estavam habituados à Al Qaeda e a seus semelhantes, como o Boko Haran, na Nigéria. Aquela organização terrorista, que surgiu no Afeganistão em 1988 e que cometeu seus mais espetaculares atentados no 11 de Setembro de 2001, nos Estados Unidos, é estruturada de modo clandestino e de modelo verticalizado.
Funcionavam com comando central, campos de treinamento e missões ao exterior, para as quais deslocava sigilosamente ativistas com uma missão precisa. Cometido o atentado, os integrantes da rede que não haviam perecido – seria a lógica dos suicidas – tendiam a se dispersar e a aguardar por um novo plano.
O Estado Islâmico é de formação bem mais recente. Surgiu em 2014, com o projeto de unir radicais muçulmanos sunitas na Síria e no Iraque para a formação de um califado, dentro de um território a ser militarmente conquistado.
Era uma espécie de exército com hierarquia interna e apoio logístico de milionários sauditas, que também defendem por meios violentos – sem maior publicidade – o controle mundial do Islã, com a paralela aniquilação dos “infiéis”, etiqueta debaixo da qual eles incluem cristãos e muçulmanos xiitas (majoritários no Iraque e hegemônicos no Irã).
Uma centena de mesquitas, localizadas sobretudo na Europa e nas quais tais ideias eram difundidas, passaram a funcionar como centros de recrutamento. Os combatentes penetravam como turistas na Turquia e a seguir atravessavam a fronteira com a Síria, onde recebiam uniformes e armas para entrar em combate.
As finanças passaram a também depender das refinarias de petróleo que o grupo passou a controlar no Iraque – o combustível era vendido a contrabandistas por um preço bem menor que o de mercado – e pela expropriação dos cofres de agências bancárias em cidades das quais se apoderavam.
A QUEDA DE FALLUJAH
Foi o caso da cidade iraquiana de Fallujah, 70 km a oeste de Bagdá, tomada pelo grupo entre 2014 e junho último. A perda da cidade acelerou o refluxo territorial da organização. Hoje ela possui 40% a menos que as terras que já havia controlado no Iraque e 20% a menos que na Síria.
Serviços de inteligência americanos informaram que o dinheiro transportado na evacuação de Fallujah foi queimado por bombardeios de aviões ocidentais (sobretudo dos Estados Unidos e França), em meio a ofensivas dos xiitas do Hizbollah libanês ou de sunitas curdos, todos envolvidos numa espécie de coalizão oficiosa para combater a organização terrorista.
Por mais que mantenham ainda o controle das cidades iraquianas de Raqqa e Mossul, o Estado Islâmico surpreendeu em maio último, com mensagem divulgada por seu porta-voz, Abu Adnani.
Ele disse, em resumo, que a organização não estava mais interessada em recrutas que se sacrificavam para chegar até suas bases miliares no Iraque e na Síria. Em lugar deles, recomendava que os simpatizantes permanecessem em seus países de origem e partissem para pequenos ou grandes atentados.
Com essa palavra de ordem, a hierarquia em parte desapareceu. Os núcleos do califado não sabem quais os atentados que estão sendo planejados. E não fornece mais apoio logístico (armas, dinheiro, explosivo, transporte).
Cada grupo de terroristas, ou mesmo alguém que acredite poder atuar individualmente, sem pedir a autorização para ninguém, passa a ser o portador de uma espécie de fanquia do Estado Islâmico (também chamado de Isis ou Daesh).
Provedores de internet abastecem esses simpatizantes com documentos de doutrinação. Eles deixam de depender do reforço doutrinário de grupos radicais que atuam dentro das mesquitas.
A moral da história é que os serviços ocidentais de inteligência ficaram de mãos atadas. Não conseguem se infiltrar em células ativas, como ocorria com a Al Qaeda ou com os primeiros grupos do Estado Islâmico. Não conseguem prender ativistas para interroga-los e descobrir algum plano.
É nesse contexto de pura dispersão que surgiram os chamados “lobos solitários”, muitas vezes com um passado na prisão por crimes comuns e que, interessados em “embelezar” suas biografias, tomam a decisão de se tornar terroristas.
São indivíduos armados de forma artesanal. Não têm acesso a explosivos para se estourarem como homens-bomba (ainda frequentes no Iraque). Não têm sequer um arsenal de AK-47, a metralhadora de fabricação russa utilizada pela guerrilha latino-americana nos anos 1970.
Então, onde está escondido o Estado Islâmico? É uma incógnita. E é em razão desse desconhecimento que os organismos de segurança e repressão se movimentam muitas vezes no escuro. E são surpreendidos pala aparição espetacular do inimigo.