Telejornalismo de cenotécnica
Nossos produtores de conteúdo, pelo seu suspeito subjetivismo esquerdista, nos apresentam um Estado que pode tudo e veio para dispensar, senão sabotar, a incipiente cidadania política brasileira
Ao contrário de um cinismo recorrente que responsabiliza a incultura do povo pelo flagelo de nossas práticas políticas, tenho defendido que a responsabilidade é nossa, dos que tem capacidade de formular propostas e não conseguem se articular em face da urgente necessidade de aprimoramento de instituições, e sem o que o país não retomará sua rota de desenvolvimento.
Tenho dado exemplos, inclusive, de várias iniciativas de lideranças religiosas, empresariais, profissionais liberais, promotores públicos, oficiais militares etc.
Mas não tenho achado nada digno deste título de responsabilidade política por parte de um segmento vital para a mudança de nossa barbárie política: os produtores de conteúdo da grande mídia, sejam editores do jornalismo, sejam novelistas e demais produtores de entretenimento.
Pelo contrário, o relativismo moral de nossos novelistas, que afronta a índole conservadora e a tradição de bons costumes da grande maioria do povo brasileiro, realimenta de um viés socialista utópico, quando não de simples esquerdismo, os valores morais corrompidos da atividade política nacional.
E depois vêm falar em isenção. Com o exagero da cobertura dos delitos políticos sem o necessário contraponto da cidadania que exige moralidade pública, fica no imaginário social brasileiro a crença infundada de que “o crime compensa”, até mesmo quando as parcas penas dos delinquentes políticos são cumpridas.
Para não falar na miséria da demagogia, mal maior da degradação da democracia do que a própria tirania.
Nossos produtores de conteúdo, pelo seu suspeito subjetivismo esquerdista, nos apresentam um Estado que pode tudo e veio para dispensar, senão sabotar, a incipiente cidadania política brasileira, as autoridades religiosas, as autoridades paternas e até mesmo o livre-arbítrio do cidadão, valor sobre o qual foi construída a própria civilização ocidental.
Princípios consagrados de moralidade pública e civismo têm sido constantemente corrompidos pelo tratamento relativista de um telejornalismo arrogante que acha que se apropria do real pela correta e asséptica narrativa da reportagem, sem admitir o contraditório, sobretudo as críticas que começam a lhe fazer o próprio público.
O que tem resultado em queda de audiência, que não se combate apenas com medidas de cenotécnica, mas com o enfrentamento de suas próprias contradições, a começar pela corrupção dos valores.
Senão, vejamos apenas uma edição do Jornal Nacional da última quinta-feira, 9 de julho, que podemos acompanhar no próprio site da emissora.
O ainda telejornal de maior audiência da televisão brasileira dedica quatro de suas cinco principais matérias à questão da saúde pública: “Hospital referência contra câncer em PE está sem remédio para tratamento”; “Pacientes denunciam falta de curativo e remédios em hospital do Amazonas”; “Remédios que sobram são doados para quem precisa no interior de SP”; “Poder público vai pagar fertilização que pode salvar menina no RS”.
Só pelo encadeamento destas chamadas dá bem para perceber o tipo de concepção de Estado e de política pública, de justiça e cidadania, enfim, que os editores têm e projetam para a construção do imaginário social brasileiro.
Basta expor as matérias para um cidadão comum e perguntar o que ele entende. Para a primeira, fica evidente para o senso comum, que os recursos públicos da saúde são pessimamente geridos, mas em nenhum momento há sequer uma menção de suas causas no domínio da imoral prática política exercida.
O cidadão aparece apenas na sua condição de usuário sofredor da ineficiência dos agentes públicos a que é fatalmente condenado. Na matéria seguinte, o cidadão reaparece no papel de mero reclamante dos mesmos desserviços e com que lhe afrontam a dignidade.
Em nenhum momento os editores entrevistam cidadãos capazes de fazer propostas, mas apenas os sofredores usuários ou os gestores públicos de sempre, se esquivando em jogos de empurra municipal, estadual ou federal, como no poema de Drummond.
Na terceira matéria, enfim, o fragrante de relativismo moral, a torta concepção de Estado, política como assistência social, cidadania como mera solidariedade. A mútua-ajuda social, jamais a política, a chance perdida mais uma vez de contribuir para qualificar o debate público.
Na quarta e última matéria, enfim, o clímax da corrupção dos valores: a justiça enviesada de “social”. Um promotor, nas raias da irresponsabilidade fiscal, convicto de um Estado Divino Provedor e sob a falsa alegação da garantia da vida, denuncia à sanha de uma magistratura voluntariosa e reformista, o Poder Público a arcar com um tratamento de mais de 30 mil reais de uma única paciente.
Quatro matérias que, pela sua sequência e não apenas pelas suas narrativas em si, conduzem a uma cidadania passiva com direitos sociais ilimitados, mas sem nenhum dever de tomar iniciativas de efetivamente garanti-los, para além da pueril solidariedade!
Para além dos méritos de nosso jornalismo investigativo nos mostrar o mar de lama da vida pública, contribuindo inclusive para a desmobilização política do cidadão, os editores sonegam o melhor do jornalismo cívico já praticado nos demais ramos do entretenimento, da cultura, do meio-ambiente, dos direitos humanos, da economia solidária, da segurança pública, etc.
Um telejornalismo que se omite da cobertura de centenas de organizações civis brasileiras que travam suas lutas exatamente na trincheira mais importante da política, que acompanham e fiscalizam mandatos políticos, a execução dos orçamentos e o próprio desempenho das instituições.
Um setor emergente da sociedade civil brasileira e que não é simbólica e apropriadamente representado nos telejornais. Ao contrário da ampla e redundante cobertura dos políticos profissionais e suas tenebrosas transações. Em contradição com a assepsia do próprio padrão global de qualidade, os editores reforçam deliberamente este imaginário da degradação dos valores e de nossa condenação fatal ao pântano da política.