Shein chega ao Brasil para chacoalhar o mundo da moda
O conceito de fast fahion low price da plataforma chinesa serve como modelo disruptivo e pode abalar de imediato o comércio do Brás e do Bom Retiro
No final da década de 1940, o mundo da moda vive uma revolução com a chegada do conceito prêt-à-porter, com o lançamento de roupas "prontas para vestir", como opção à alta-costura.
O setor de vestuário passou a ser movido por produção em larga escala, com o propósito de oferecer para o consumidor praticidade, variedade, preço e ainda revelar tendências.
Na década de 1990, surge a segunda revolução no mercado de vestuário, a chamada moda fast fashion, a moda rápida, com a oferta até diária de novas peças nas lojas.
A rede espanhola Zara, a sueca H&M e a britânica Topshop estão entre as empresas que se destacam na maneira de produzir peças que remontam à alta-costura com preços baixos.
Hoje, a chegada do fenômeno Shein no mercado de vestuário no mundo, e no Brasil desde 2020, já é considerada a terceira revolução da moda por quem estuda e atua no setor.
Somente no ano passado, a plataforma chinesa que marca o conceito de fast fashion low price teria faturado cerca de R$ 8 bilhões no Brasil, de acordo com estimativas do banco BTG Pactual.
Como base de comparação, o faturamento da Lojas Marisa foi da ordem de R$ 2,8 bilhões em 2022, com cerca de 340 lojas. Em crise financeira, esses números já são menores neste ano.
Recentemente, a Shein anunciou que pretende, em um prazo de quatro anos, produzir no Brasil 85% dos produtos que comercializa por aqui na plataforma.
Para viabilizar a produção, a empresa deve contar com 2 mil confecções que produzem para a Coteminas, que pertence a Josué Gomes da Silva, presidente da Fiesp.
Evidentemente, esta não é uma boa notícia para os empresários que disputam o mercado de moda no Brasil, especialmente para quem atua na mesma faixa de preços da Shein.
MÁGICA?
Antes de entrar em desespero, como dizem alguns lojistas, será que a Shein, ao produzir no Brasil, vai conseguir ainda vender vestidos e tops por menos de R$ 50 e não cobrar frete?
Se sim, especialistas e empresários do setor de moda querem saber qual é a mágica, pois a carga tributária que incide sobre as roupas feitas e vendidas no país é da ordem de 40%.
“Se conseguir, a plataforma vai seguir um preceito do consumidor, que quer comprar barato, e vai chacoalhar o mercado de moda”, afirma Marcos Hirai, sócio-fundador do NDEV (Núcleo de Desenvolvimento de Expansões Varejistas).
Para ele, a Shein deve criar um vácuo no varejo de moda no Brasil, principalmente no mercado de empresas que comercializam produtos com qualidade e preços semelhantes.
“Se o mercado que é massivo segue nesta direção, não adianta o varejista ir contra. Ou as empresas correm atrás ou vão ficar pelo meio do caminho”, afirma.
BRÁS E BOM RETIRO
Um dos efeitos imediatos da chegada da Shein, diz ele, pode ser o esvaziamento de regiões comerciais que abastecem lojistas de todo o país, como os bairros do Brás e do Bom Retiro.
Um lojista do interior da Bahia, que costumava vir três a quatro vezes por ano para São Paulo para fazer compras, pode se abastecer com apenas um clique, sem sair de casa.
“Não adianta fechar os olhos para essas questões. A Shein vai mexer com o mercado brasileiro e as empresas vão ter de se adequar”, diz.
A plataforma provoca impacto no Brasil independentemente de produzir de forma certa ou errada na China, na avaliação de Maurício Morgado, líder do FGVcev (Centro de Excelência em Varejo) da FGV (Fundação Getulio Vargas).
“Com a velocidade de produção e a capacidade de detectar o que está na moda, a Shein provoca a terceira revolução no mundo da moda sob o conceito fast fashion low cost.”
A empresa chinesa é mais rápida do que as redes com foco em fast fashion, diz, e nasceu com uma inteligência de rede social na qual os consumidores, não modelos, divulgam as peças.
“O impacto no varejo de moda é a potencialização de tudo isso. O consumidor quer novidade, preço, rapidez na entrega, tudo o que a empresa oferece”, afirma Morgado.
A Shein não possui, pelo menos por enquanto, loja física no Brasil. A empresa fez um teste no mercado brasileiro em novembro do ano passado com uma pop-up (loja temporária) no shopping Vila Olímpia, e se surpreendeu com o sucesso de público.
Com ou sem loja física, o fato é que pesquisa realizada pela Varejo 360 no ano passado mostra que o consumidor do estado de São Paulo está cada vez mais comprando pela internet.
De cada 100 pessoas consultadas, 61 informaram que fazem compras on-line e 63 declararam que preferem realizar as compras digitais por meio de marketplaces. Outras 35, por sites.
Oportunidade para economizar é o principal motivo apontado pelas pessoas na hora de optar pela compra pela internet, e este é justamente o grande apelo da Shein.
“A entrada da Shein vai aumentar a concorrência”, diz Fernando Faro, CEO da Varejo 360.
DISRUPÇÃO
Especialistas em varejo asseguram que a Shein serve como um modelo disruptivo e provoca reações no mercado, assim como já se vê em países da Europa.
Fundada em 1962, em Dublin, na Irlanda, a Primark deu início a um processo de expansão nos últimos oito anos, de acordo com Hirai, seguindo o caminho da Shein.
A Zeeman, rede holandesa com 1.300 lojas espalhadas pela Europa, fundada em 1967, adotou o modelo da plataforma chinesa, diz, e nunca cresceu tanto.
Outros exemplos são a Pepco, fundada em 1999 na Polônia, com quase 3 mil lojas, e a TEDI, empresa fundada em 2004, em Dortmund, na Alemanha, com 2.900 lojas na Europa.
“Marcas tradicionais entenderam que este era o caminho e, de alguma forma, estão tentando pegar carona no modelo que atende um público muito movido a preço”, diz Hirai.
Somente em Portugal, de acordo com ele, a Pepco se prepara para abrir 50 lojas.
‘CORTINA DE FUMAÇA’
Para alguns lojistas, o anúncio da Shein de investir R$ 750 milhões no setor têxtil brasileiro e gerar até 100 mil empregos está mais para "cortina de fumaça" do que para a realidade.
A intenção teria sido anunciada apenas para acalmar o mercado, dizem, incomodado com a possiblidade de ter de competir com a plataforma em condições desiguais.
Quando chegou ao Brasil, em 1999, a Zara também tinha planos mais ambiciosos para o Brasil. Hoje, a produção no país representa menos de 10% do que é vendido em suas lojas.
“Uma coisa é trazer de fora e vender aqui. Outra é produzir aqui para vender aqui. Se entrar no Brasil mesmo vai ter de arcar com os mesmos custos de empresas brasileiras”, afirma Mário Goldberg, diretor da Taco, rede com 130 lojas espalhadas pelo Brasil.
Para ele, a plataforma chinesa deve ocupar espaços de redes com problemas financeiros que atuavam ou atuam na mesma faixa de preço, como Lojas Marisa e Pernambucanas.
É capaz também, de acordo com ele, de brigar com redes como Riachuelo e Renner.
“Eu já vi este filme antes, os desafios para produzir no Brasil são grandes, pois o país possui um sistema tributário único no mundo, difícil de entender. Não é para amadores.”
A Taco, de acordo com ele, não sofrerá com a entrada da Shein porque tem um público consolidado, que gosta de produto básico, com modelagem e qualidade.
DÍVIDAS, TRIBUTOS
Mesmo antes da Shein, redes de porte médio já estão com dificuldade para sobreviver, de acordo com Luís Felipe Salles, CEO da Mix Retail Malls. “Em shoppings, muito provavelmente, teve mais fechamento do que abertura de lojas no ano passado”, afirma.
As âncoras, diz, conseguem se manter por que de uma forma ou de outra têm mais acesso a capital. E o pequeno sobrevive porque tem custo menor e vive da receita do dia a dia.
“O problema maior é para a rede média, com dez a 15 lojas, que precisa crescer para se manter e não consegue em razão de endividamento, juros elevados, vendas fracas e altos tributos.”
O efeito Shein, de acordo com ele, é mais um desafio que se impõe para os lojistas no mercado brasileiro, com menos impacto para quem tem força de marca.
DESAFIOS
Diante deste cenário, os desafios dos lojistas, diz Morgado, são errar menos, antecipar tendências, coletar informações de clientes e ter canais de comunicação automáticos ou não.
Influenciadores digitais, em sua avaliação, estão ditando a moda no Brasil, e há grupos menores de famosos, com 500 mil seguidores, que podem ajudar os lojistas na comunicação.
Ter um site responsivo para smartphones também é fundamental, de acordo com Faro. “Se os canais digitais não oferecem uma boa experiência aos usuários, corre-se o risco de perder vendas para os concorrentes”, diz.
O mais importante para sobreviver neste momento, de acordo com Salles, é não valorizar somente preço, mas a marca, o negócio. “O lojista tem de entregar sorriso, atendimento, carinho e bons produtos. Quem prioriza preço em vestuário de moda, não marca, vai ter problema, vai ficar pelo caminho.”
IMAGEM: William Chausse/DC