Relevante e polêmico: o legado de Delfim Netto

Na opinião de seus pares, o economista e ex-ministro da Fazenda foi protagonista do 'milagre econômico' e nunca saiu dos debates envolvendo política e economia

Redação DC
12/Ago/2024
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Relevante e polêmico: o legado de Delfim Netto

*Karina Lignelli com Estadão Conteúdo

Delfim Netto, um dos economistas mais poderosos do país e também uma das figuras mais complexas e polêmicas da história brasileira, morreu na madrugada desta segunda-feira, 12/08, em São Paulo, aos 96 anos. 

Ministro do regime militar nos governos dos generais Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici e João Baptista Figueiredo, além de deputado federal, Delfim também foi um dos principais conselheiros de presidentes - como Temer e Lula - e de empresários.

Era ele que estava no comando da economia entre 1967 e 1973, durante os anos mais críticos da ditadura, quando o Produto Interno Bruto cresceu 85% e a renda per capita dos brasileiros, 62%, período batizado como "milagre econômico".

Delfim personificou o milagre brasileiro: em quatro anos, saiu 18 vezes na capa da revista Veja, e era a figura do governo mais presente nas páginas dos jornais. Nenhum ministro concentrou tanto poder como ele. Delfim não só testemunhou, como influenciou momentos mais marcantes da história do Brasil.

Estava presente (e votou a favor), no dia 13 de dezembro de 1968, quando o general Costa e Silva baixou o Ato Institucional número 5, decreto que acabou com liberdades políticas e deu poder de exceção a governantes para punir arbitrariamente os inimigos do regime.

Foi protagonista do milagre econômico e, mais tarde, da crise do endividamento externo brasileiro. Viu a hiperinflação, da qual foi considerado 'culpado' - questão rebatida por alguns economistas, que creditam o problema ao choque do petróleo da década de 1970. Também presenciou a redemocratização, participou da Constituinte, criticou o Plano Real e ajudou o PT a chegar ao poder, como uma espécie de conselheiro econômico de Lula.

Com mais de 90 anos, Delfim continuava contribuindo com o debate econômico, era considerado um grande "contador de causos", e não parou de se atualizar: seguia estudando e produzindo artigos acadêmicos, em sua quinquagenária máquina de escrever Olympia.

Com mais de 100 quilos em 1,60 metro de altura, o 'Gordo', como era chamado, tinha dificuldade para caminhar, mas não para debater economia. "Delfim conversava muito, cuidava dos argumentos para garantir a civilidade, mas sempre encontrou formas sutis de entrever suas críticas", diz o economista Marcos Lisboa. "Suas histórias eram permeadas de observações que despertavam a graça e a simpatia dos ouvintes, em meio a críticas que despontavam ocasionalmente, desde que o ouvido fosse apurado." 

Economista-chefe da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), Marcel Solimeo, que foi seu aluno na USP, diz que legado de Delfim é o de "um estudioso que se posicionava sempre." E, embora tivesse um grande conhecimento de teoria econômica, Delfim era bastante pragmático, segundo Solimeo, pois sempre dizia que nem todo problema se resolvia com teoria.

"Ele justificava suas posições com muita clareza, até com uma certa ironia. E foi polêmico, como todas as pessoas que tomam posições, o que não agradava a todos. Como dizia Nelson Rodrigues, 'toda uninimidade é burra, mas sua contribuição para o Brasil é positiva: como ministro, como acadêmico que escreveu vários livros, e também como pessoa."   

O ex-ministro não veio da elite. Neto de imigrantes italianos, nasceu e cresceu no bairro do Cambuci, em São Paulo. Sua mãe, Maria, era costureira e ficou viúva quando o filho tinha nove anos. O pai, José, trabalhava na empresa de transportes da prefeitura de São Paulo (CMTC).

Mas era o avô paterno - o Antônio que lhe deu o nome - sua grande referência: o italiano que veio para o Brasil nos anos 1880 para trabalhar na lavoura de café acabou fazendo a vida na capital, calçando ruas a serviço da prefeitura. De calceteiro, virou dono de uma mina de pedras e passou a ser fornecedor do poder público - história que Delfim adorava contar. 

Doador de 88 mil volumes (incluindo mobiliário) da sua biblioteca pessoal para USP, há um painel da biblioteca original do paulistano Delfim Netto na porta da FEA, que reproduz uma frase sua escrita em 1972 - e que diz muito sobre quem ele era: 

"Ninguém pode ter ilusões. O desenvolvimento não é um processo tranquilo, calmo, no qual cada um de nós vai manter a sua posição. É um processo doloroso, difícil, trabalhoso. Cada um vai ter as suas posições sociais mudadas, porque o mundo à nossa volta está mudando. Quem correr vai ficar onde está, quem parar vai ser atropelado. Esta é a noção clara de desenvolvimento. Não existe outra."

USPIANO E ASSOCIATIVISTA

Estudante de escola pública, com curso técnico em contabilidade, o ex-ministro começou sua formação intelectual aos 14 anos, quando trabalhava como office-boy na Gessy Lever. Inspirado por um funcionário, começou a ler os socialistas fabianos, representantes de um movimento britânico que defendia uma passagem gradual para o socialismo, sem luta de classes - corrente que mais tarde ele criticaria. Está aí a origem do nome de sua única filha, Fabiana.

Embora sonhasse em ser engenheiro, Delfim precisava de um curso que lhe permitisse trabalhar meio período - condição que o fez cursar economia na USP e prestar concurso público para o Departamento de Estradas de Rodagem (DER). Foi estudando sozinho que conseguiu entrar na universidade. Seu gosto por garimpar livros em sebos e livrarias o fez montar uma biblioteca com quase 300 mil títulos, parte deles doados para a USP.

Na universidade paulista, onde foi aluno e professor, participou de um movimento que revolucionou o pensamento econômico no Brasil, aos moldes do que já se fazia fora do País: a narrativa começava a dar lugar ao uso de dados e à econometria.

Sua tese de doutorado sobre "O Problema do Café no Brasil" virou livro e é uma referência até hoje. Delfim desmontou os argumentos que sustentavam a intervenção brasileira no mercado mundial do café, e a ideia de que os cafeicultores precisavam ser protegidos.

Nessa época, já prestava assessoria econômica para a ACSP, e mantinha uma forte relação com o empresariado paulista. Foi responsável por atrair alguns alunos mais próximos para participar de debates econômicos nos conselhos, e até da equipe técnica do seu Instituto de Economia Gastão Vidigal, da qual foi superintendente. Como Marcel Solimeo, quase 61 anos de ACSP que, também o considera "colega de trabalho" na entidade, cuja biblioteca armazena diversas publicações como livros, artigos e estudos do ex-ministro e economista. Em 2013, palestrou sobre o momento econômico em homenagem aos 50 anos de casa de Solimeo.

Roberto Mateus Ordine, presidente da ACSP, lamentou a perda, afirmando que Delfim foi um dos brasileiros que mais contribuiu para o desenvolvimento do país, não só para as questões econômicas, mas também as políticas. "Sem contar que ele começou suas atividades 'nesta casa', como superintendente do Instituto de Economia, onde ficou por cerca de 20 anos até ser tornar secretário da Fazenda. É um companheiro ilustre, e um grande amigo que perdemos." 

Ao reforçar suas relações com o sistema associativista, Alfredo Cotait Neto, presidente da Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil (CACB), e da Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo (Facesp) afirma que Delfim foi um homem que entendia a arte do diálogo, e o um dos poucos a transitar entre grupos de visões antagônicas.

"Era político quando necessário, e acadêmico quando preciso. Características que o fizeram ser de ministro, a embaixador do Brasil na França, professor da USP e deputado constituinte, sempre pronto para debater, de forma qualificada, o Brasil e o desenvolvimento nacional."

'TODO PODEROSO'

Onipotente era um adjetivo que cabia bem a Delfim enquanto ele esteve na Fazenda. Ao assumir o comando, para reverter o baixo crescimento que herdou de seus antecessores (os ministros da Fazenda, Octávio Gouvêa de Bulhões, e do Planejamento, Roberto Campos), Delfim Netto ampliou subsídios e adotou uma política agressiva de estímulo às exportações e ao crédito. Os bancos estatais, controlados pelo ministro, injetavam recursos na economia e o Orçamento estava sob seu controle. Os ministros que bateram de frente com o 'Gordo' caíram.

Empresários foram chamados por ele a financiar o combate à subversão e compareceram. Na reunião que instituiu o AI-5, sugeriu que o decreto não bastava e que o presidente deveria ter ainda mais poder. Em depoimento à Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo, em junho de 2013, Delfim afirmou que não se arrependia de ter sido um dos elaboradores do AI-5. "Se as condições fossem as mesmas, e o futuro não fosse opaco, eu repetiria. Eu não só assinei o AI-5, como assinei a Constituição de 1988."

Sob o comando de Delfim, o país investiu em grandes obras de infraestrutura, como a Ponte Rio-Niterói, e a nunca terminada rodovia Transamazônica. Para reduzir a inflação, ele manipulou preços dos alimentos: sabia exatamente quais gêneros entravam no cálculo do índice da Fundação Getúlio Vargas, apenas no Rio, e dava um jeito de aumentar a oferta desses produtos na cidade, derrubando preços.

Depois de mandar e desmandar na economia durante os governos de Costa e Silva e Médici, Delfim tinha pretensões políticas: queria ser governador de São Paulo em 1974 e presidente da república em 79. Mas o quarto presidente do regime militar cortou-lhe as asas. Ernesto Geisel, que era presidente da Petrobrás no governo Médici, sempre implicou com Delfim. O clima entre eles ficou pior entre 1973 e 1974, quando o preço do barril de petróleo quadruplicou.

O chefe da petroleira, já escolhido como próximo presidente militar, queria antecipar o aumento do combustível, mas Delfim negou o reajuste. "Quem vai aumentar é você", disse o economista. Indícios de corrupção também ajudaram a derrubar o ministro da Fazenda e sua equipe. Com o objetivo de barrar as pretensões políticas de Delfim, Geisel o nomeou embaixador brasileiro em Paris. Três anos depois, já no governo de Figueiredo, Delfim Netto volta ao Brasil e, apoiado por empresários, assume um dos ministérios - da Agricultura.

Nos meses seguintes, ele derrubaria os ministros da Fazenda Karlos Rischbieter, e do Planejamento, Mário Henrique Simonsen. E voltaria a assumir o controle da economia, não mais para pilotar o milagre, mas para gerir uma crise. Depois do choque do petróleo, o governo e as empresas tomaram empréstimos a um custo baixo no exterior.

Em 1981, quando os EUA elevaram a taxa de juros, a dívida brasileira explodiu e o País quebrou. No ano seguinte, teve de recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Delfim Netto ficaria no comando da economia, como ministro do Planejamento, até o fim do regime militar. Ele entregou o País com uma inflação anual de 235%, e uma dívida quatro vezes maior do que a do início da ditadura. A inflação só voltaria a ficar sob controle depois do Plano Real.

Ao deixar o governo Figueiredo, mesmo em meio a uma série de denúncias de irregularidades, como a cobrança de propina para facilitar negócios de empresas francesas no Brasil, Delfim Netto se candidatou a deputado federal pelo PDS (antigo Arena) e voltou para Brasília - onde ficaria por cinco mandatos até perder as eleições em 2006.

Ele dava risada ao lembrar que, nessa época, era o terror da esquerda brasileira. "O pessoal do PT saía do elevador quando me encontrava, achando que aquilo ia me incomodar." Como deputado federal, participou da constituinte e foi um crítico das políticas econômicas de Sarney, Fernando Collor de Mello, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso.

Quando o Plano Real foi anunciado, em fevereiro de 1994, considerou-o "eleitoreiro" e defendeu uma política de "privatizações selvagens" para controle da inflação - mais tarde ele mudaria de ideia em relação ao plano, mas continuaria sendo oposição a FHC, a quem chamava de "exterminador do presente". Dizia que os juros altos eram a "tragédia do trabalhador desempregado", e a "alegria do banqueiro endinheirado" - um discurso que começou a agradar até a seus adversários históricos da esquerda.

METAMORFOSE AMBULANTE 

Nas eleições de 1998, já como membro do PPB de Paulo Maluf, disse que Lula não devia ser "satanizado". No pleito seguinte, em 2002, elogiou a Carta ao Povo Brasileiro, mas só quando o sindicalista passou para o segundo turno com José Serra, Delfim Netto manifestou seu apoio, em uma entrevista publicada no site de Lula.

No governo petista, teve um assento no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, indicou pessoas próximas para cargos em estatais, foi conselheiro da Empresa Brasil de Comunicação e cogitado diversas vezes para ser ministro.

Em 2009, declarou que "Lula salvou o capitalismo brasileiro". O ex-ministro apoiou a candidatura de Dilma Rousseff e chegou a ser conselheiro da petista. Os dois romperam em 2012, contava Delfim, depois que o governo forçou uma redução no preço da energia elétrica, o que considerava um dos grandes equívocos daquela gestão.

Tão próximo dos petistas, Delfim não escapou da Operação Lava Jato. Em 2018, foi citado por suspeita de fraude na licitação da usina de Belo Monte, usando sua influência para beneficiar o consórcio vencedor. Sua defesa contestou a acusação, dizendo que os recursos apontados como propina eram a remuneração por consultoria prestada a empreiteiras.

Quando viu que o governo ia afundar, Delfim Netto mudou de barco. Meses antes de Dilma ser afastada do cargo, o economista já se encontrava regularmente com o vice Michel Temer, que assumiria a Presidência após o impeachment. Com Bolsonaro no poder, voltou seus elogios para a política liberal de Paulo Guedes. Dizia que Guedes era o lado iluminado do governo.

Ao tentar definir Delfim, o pesquisador da FGV Samuel Pessôa disse certa vez que o ex-ministro era "a figura mais complexa da segunda metade do século 20 no Brasil", e resumiu:

"Ele compactuou com o regime militar na parte mais dura da ditadura, no que houve de mais violento e condenável daquele período negro da nossa história, mas é um economista espetacular, dos melhores da nossa história."

O ex-ministro da Fazenda, e ex-deputado federal, estava internado desde 5 de agosto no Hospital Israelita Albert Einstein, em decorrência de complicações no seu quadro de saúde. Ele deixa filha e neto. Não haverá velório aberto e seu enterro será restrito à família.

 

IMAGEM: Salu Parente/Camara dos Deputados

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