Reforma da Previdência: restrição ou garantia de direitos?

Em palestra na ACSP, a procuradora geral da República e especialista em seguridade social Zélia Luiza Pierdoná (acima), apontou desafios futuros não previstos no texto-base, que devem gerar impacto no novo modelo

Karina Lignelli
16/Out/2019
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Reforma da Previdência: restrição ou garantia de direitos?

Longevidade, redução da natalidade e, principalmente, o impacto das novas tecnologias nas relações de trabalho, que não foram previstas no texto aprovado no Senado no último dia 2 de outubro. São essas mudanças na sociedade que devem levar, em no máximo dez anos, à necessidade de "reformular a Reforma" da Previdência para criar um novo modelo de proteção social, já que a remuneração decorrente do trabalho com vínculo empregatício vai diminuir.

Esses, que são principais desafios para o futuro da seguridade social no Brasil, foram apontados na na palestra "Reforma da Previdência: até onde chegamos e o que falta fazer?", apresentada por Zélia Luiza Pierdoná, professora de seguridade social da Universidade Mackenzie e procuradora regional da República, durante reunião do Conselho de de Altos Estudos de Finanças e Tributação (Caeft), da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), realizada na última segunda-feira (14/10).   

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Num país onde mais de 50% das causas na Justiça dizem respeito à seguridade social, e que é o único onde a proteção assistencial é igual à contribuição - o que desestimula o cidadão de baixa renda a contribuir -, a Reforma traz alguns avanços do ponto do vista do financiamento, diz a especialista, que também é mestre e doutora em Direito pela PUC-SP. 

"A reforma vai diminuir um pouco os gastos atuais porque vai retardar um pouco a busca dos benefícios. Com ela, esses benefícios serão menos generosos do que hoje, em que a pensão por morte ou os benefícios por incapacidade têm percentuais muitos maiores que do que o de alguém que está na ativa e contribuindo", afirma. 

O problema, já que capitalização (um modelo mais justo, segundo ela, ao ser associado à renda básica) saiu da proposta, é continuar do modo como está - ou seja, no sistema de repartição, onde toda a sociedade contribui, mas apenas os trabalhadores e seus dependentes usufruem. De acordo com a professora, dos R$ 589 bilhões gastos com Previdência anualmente, R$ 395 bilhões referem-se às contribuições da empresa sobre a folha de pagamentos. 

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"À medida que há um déficit fiscal e aumento do desemprego, como é que eu vou fazer ajustes para garantir a proteção previdenciária e a viabilidade financeira para as novas necessidades por meio de políticas públicas - como por exemplo a de dependência de um terceiro (no caso de um idoso ou uma pessoa com necessidades especiais, por exemplo)?", questiona. 

Ela lembra também que a Previdência precisa garantir o saldo a pagar para as pessoas que já estão aposentadas e vão viver por um período longo. Mas serão os recursos dos que não-aposentados que serão destinados para cobrir os benefícios que vão perdurar. E esses jovens, mesmo pagando mais, terão uma proteção previdenciária muito aquém do que a que se tem hoje. 

"Temos o dever de garantir direitos às gerações futuras. Os nossos filhos e netos não podem pagar a conta pela falta deles - uma irresponsabilidade que os constituintes de 1988 fizeram ao priorizar 'corporações' - no caso, os trabalhadores", opina.

A reunião do Caeft foi comandada por seu coordenador geral, Luís Eduardo Schoueri, advogado tributarista e vice-presidente de Relações Jurídicas da ACSP, e contou com a presença de Roberto Mateus Ordine, 1º vice-presidente da ACSP.

ZÉLIA, COM ORDINE (1º À ESQ.) E SCHOUERI: REFORMULAÇÃO PARA
CRIAR UMA NOVA FORMA DE PROTEÇÃO PREVIDENCIÁRIA

A seguir, confira alguns trechos da entrevista com a professora Zélia Pierdoná:  

A senhora disse que, pela forma como foi aprovada, a PEC 6/2019 levará a Previdência não a ser reformada, mas reformulada num futuro não muito distante. Explique: 

Na verdade, o atual texto (aprovado pelo Senado Federal no última dia 1/10) avançou em alguns pontos, mas precisa avançar em outros: eu entendo que essa reforma não visualizou as mudanças do mercado de trabalho decorrente das novas tecnologias. Em razão disso, acredito que, no máximo em dez anos, teremos que pensar não em reformá-la, mas em modificá-la para criar uma nova forma de proteção. Hoje, essa proteção baseada na remuneração do trabalho a médio e longo prazo não vai subsistir - justamente porque vai diminuir a remuneração decorrente do trabalho com vínculo empregatício. 

Foi isso o que senhora quis dizer sobre os jovens profissionais, que no futuro "vão comer cachorro quente pagando preço de Fasano"?

Exatamente. Porque a Previdência vai ter um saldo a pagar para as pessoas que já estão aposentadas e vão viver por um período longo. Mas são os recursos dos que não estão aposentados que serão destinados para isso, pois os benefícios que foram concedidos terão que ser mantidos por um longo período. Ou seja, vamos usar recursos de outros tributos, que toda a sociedade paga, para cobrir esses benefícios atuais, que vão perdurar. E esses jovens, mesmo pagando mais, terão uma proteção muito aquém do que a que se tem hoje. 

Explique porquê a senhora defende que a renda básica mais a capitalização seria um modelo de seguridade mais justo?

Talvez esse modelo seja o mais adequado pois seria financiado com recurso de todos, ao invés do atual, em que todos contribuem mas os recursos vão só para uma categoria - que é a dos trabalhadores. Nesse outro modelo, as empresas e seus trabalhadores recolheriam a contribuição pelo sistema de capitalização, porque é o que parece mais justo pelo olhar do financiamento.

Quem está recebendo hoje vai dizer que o melhor sistema é o de repartição, mas nesse sistema, todos contribuem só para alguns terem direito. Já na capitalização, só o beneficiário e o seu patrão vão recolher para financiá-lo, e não toda a sociedade. Mas ela ficou de fora. 

Porquê, pela ótica da seguridade social, a Constituição de 1988 não deveria ser chamada de "cidadã", mas "de corporações", conforme a senhora disse? 

Porque, quando ela foi publicada naquele 5 de outubro, o (deputado federal e presidente da Assembleia Nacional Constituinte) Ulisses Guimarães disse que ela era cidadã pois era de todos, mas depois viu-se que, não só o texto constitucional, mas os seus desdobramentos, mostram o que ela prioriza. Porque hoje são gastos R$ 589 bilhões por ano só com benefícios pagos pelo INSS, mas nem R$ 120 bilhões são destinados à saúde, que é um direito de todos.

Por isso eu digo que ela é de corporações - no caso, a corporação "trabalhadores": porque estamos gastando muitos recursos de todos, como eu disse, para destinar apenas para alguns. Na Previdência, a contribuição da empresa sobre a folha do trabalhador foi de R$ 395 bilhões de um gasto total de R$ 589 bi. É uma diferença que foi paga por toda a sociedade, mas ela não usufrui disso. Quem usufrui são só os trabalhadores e seus dependentes. 

O ideal seria que todos contribuíssem igualmente para terem os mesmos direitos então?

Não. O que eu quis dizer é que hoje a Previdência é só para os trabalhadores e seus dependentes, e que eu pego recursos que transcendem a folha de pagamento, que são de todos, para beneficiar apenas alguns. Como por exemplo a Cofins: se eu comprei uma xícara ou um copo, eu pago uma série de tributos - dentre os quais, a Cofins.

Nos tributos sobre o consumo, incidem também outros tributos que são sobre seguridade social, e ao mesmo tempo são contribuições sobre o faturamento e o lucro. Ou seja: se eu comprei o copo mas recebo Bolsa-Família, vou financiar uma proteção superior à que eu recebo. 

Mas há alguma boa perspectiva em relação à Reforma? 

A reforma vai diminuir um pouco os gastos porque vai retardar um pouco a busca dos benefícios. Com ela, esses benefícios vão ser menos generosos do que hoje, em que a pensão por morte ou os benefícios por incapacidade têm percentuais muitos maiores que o do direito comparado. Por isso que fazer uma reformulação na saída também é interessante: se eu gastar menos, vou precisar de menos recursos. E esses recursos, que hoje dependem de todos e são financiados por todos, efetivamente também serão direcionados a direitos que são de todos, como saúde e educação. 

FOTO: Karina Lignelli

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