Quem teme a liberdade?
Se o desempenho dos juristas objetiva acompanhar as demandas da sociedade, outras vezes trata-se de não deixar que os retrocessos sobrevenham
Aqueles que acompanham as principais discussões que mobilizam a nossa sociedade devem se perguntar o motivo de certas questões simplesmente “sumirem da fala” – e do interesse – dos políticos.
Temas como a interrupção da gravidez no caso de anencefalia fetal, a união homoafetiva e outros que deveriam ser discutidos no Poder Legislativo –, na verdade, correm à boca pequena, ficam décadas esperando que algum fato irrompa para que políticos venham a público, resolvam a questão como heróis e ganhem notoriedade.
O resultado é o transbordamento da indignação, nada favorável ao andamento da democracia e suas bases constitucionais.
Ficamos a matutar. A que se deve tanta paralisia na Casa das Leis? São temas polêmicos? Sim. Mas o são, unicamente, por se relacionarem à liberdade de escolha que tanto incomodam setores da sociedade – notadamente religiosos – extremamente preocupados em ditar seus valores.
A julgar por espaços de tempo que remontam décadas – com projetos de lei que “somem” do plenário e mofam nas gavetas –, já nem se pode chamar a tendência retrógrada do Legislativo de conservadorismo, pois que o termo designa o pensamento daqueles que embora acreditem nas transformações da sociedade, as desejam de forma gradual.
Nem disso se trata, pois o que se tem são interesses que vêm transformando os trâmites legais e suas cautelas em morosidade doentia; aterrorizam a sociedade com sofismas mal elaborados e tentam colocar a ira de Deus contra aqueles que já se sentem oprimidos com seus próprios destinos.
E o que se percebe é o desejo persistente de parar e inverter a ordem histórica das conquistas por uma sociedade mais livre e justa.
Uma vez estampada a inércia, não há alternativa senão o Judiciário e seus magistrados pegarem a questão “à unha”, analisarem a constitucionalidade e votarem.
Não faz muito tempo, foram obrigados a lidar com a legalização da antecipação terapêutica da gravidez nos casos de fetos anencéfalos. Até mesmo a palavra “aborto” se tenta evitar, tamanha a névoa de preconceito, criminalização e culpa que a envolve.
Em países europeus, a descriminalização desse tipo de aborto ocorreu há quase três décadas. Aqui no Brasil, foi em 2004 que a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde formulou pedido de Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, para justamente tornar legal a interrupção da gravidez nos casos de anencefalia fetal; a proposta, então, foi encaminhada ao Ministro do STF Marco Aurélio Mello. Após extenuantes oito anos, nos dias 11 e 12 de abril de 2012, os ministros do STF deliberaram pela legalização.
Coloquemo-nos no lugar da mulher que acaba de receber a notícia que seu filho provavelmente nascerá sem vida; e que para interromper a gravidez necessitará de uma ordem judicial ou seu ato será criminoso, passível de um a três anos de detenção. O que o caro leitor faria?
Não se trata só de bom senso ou de arguições certeiras, mas de verdadeira compaixão, entendida aqui não como um valor moral, religioso ou cristão, mas como um sentimento natural – pouco cultivado, é verdade - que todo ser humano é capaz de ter, seja budista, evangélico, católico ou ateu.
É também uma questão de foro íntimo; há depoimentos de mulheres que preferiram levar a gravidez até o fim e, não raro, a trajetória termina com o enterro do filho logo após o parto.
Porém, mais do que deixar a mãe livre para escolher, a decisão do STF aponta para uma verdade que anda esquecida: nosso estado é laico. Isso significa que dogmas religiosos não andam de mãos dadas com a razão pública. O que fez o STF foi apontar a observância dos direitos humanos básicos, tão caros à nossa Constituição.
Se o desempenho dos juristas objetiva acompanhar as demandas da sociedade, outras vezes trata-se de não deixar que os retrocessos sobrevenham.
Esclareço: ainda no que se refere à proteção da saúde física e mental das mulheres, vale lembrar que também coube ao STF trazer à razão minoria interessada em distorcer o conceito de isonomia das leis.
Queria esta minoria apontar a inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha que, desde 2006, vem dando suporte jurídico às mulheres vítimas de violência doméstica.
Em votação ocorrida em fevereiro de 2012, que reafirmou – por unanimidade – a constitucionalidade da lei, o Ministro Marco Aurélio precisou falar o óbvio: a mulher é “eminentemente vulnerável quando se trata de constrangimentos físicos, morais e psicológicos, sofridos em âmbito privado”.
Em outro episódio histórico, também relacionado às particularidades da isonomia, o plenário do STF determinou a constitucionalidade da reserva de cotas para negros e demais afrodescendentes em universidades públicas, em votação ocorrida em abril de 2012.
A decisão em favor da manutenção das cotas denota que, para além das questões jurídicas, o STF também se alinha fortemente às questões sociais.
Tema espinhoso para uma sociedade ainda vinculada aos padrões tradicionais: a união homoafetiva. O que, efetivamente, temos a temer em relação à orientação sexual das pessoas?
Pois o Legislativo não teve competência para discutir e arbitrar sobre o assunto. Ao longo de anos, vários dispositivos e argumentos foram utilizados para garantir direitos aos companheiros de mesma orientação sexual.
À morosidade dos legisladores, a Procuradoria-Geral da República e, posteriormente, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, responderam com ações e coube, novamente, ao STF legalizar a união homoafetiva, em maio de 2011.
Ora, temas polêmicos continuarão a emergir, pois uma sociedade verdadeiramente livre e democrática requer a construção contínua de contextos em que todos sejam beneficiados, independentemente de seus valores, crenças ou escolhas pessoais. Por enquanto, resta-nos a esperança de que nossos juristas –pelo menos estes –mantenham-se em alerta.
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