Por que todo mundo quer ter um Vans?
Objeto de desejo entre diferentes grupos, a marca californiana vende o mesmo modelo de tênis há mais de 50 anos e transita das pistas de skate às passarelas sem sair de moda
Um tênis funcional que pudesse ser comprado pela classe média californiana e combinasse com os trajes usados em regiões litorâneas. Essa é a descrição que aparece nas primeiras páginas do livro A Memoir by the Founder of Vans, em que Paul Van Doren, o empresário que ajudou a fundar a Vans, narra o processo de construção dessa empresa icônica.
Quando projetou a marca que leva seu sobrenome, no ano de 1966, em Anaheim, na Califórnia, Paul Van Doren não tinha uma tribo em mente, nem sequer um propósito específico para o negócio. Sua direção era simplesmente alcançar o melhor modelo de calçado que conseguisse, com qualidade e resistência para sustentar o dia a dia de quem o comprasse.
No livro, Doren conta que na primeira manhã com a loja aberta, doze pares foram vendidos e ele entendeu que seu sonho tinha potencial. Esse primeiro modelo de sucesso recebeu o nome de Deck Shoes, mas, hoje, é mais conhecido como Authentic.
Ainda que não tivesse exatamente os surfistas na mira, a expectativa era que o produto vingasse nas mãos desse público praiano e nativo da Califórnia. Até que vieram os skatistas. Com uma borracha que facilita as manobras, adere melhor ao skate e gera estabilidade, essa tribo abraçou o tênis da Vans e se viu representada quando o esporte ainda era marginalizado.
Isso fez a marca ganhar mais adeptos e pouco a pouco melhorar seus tênis com foco nesses esportistas para se manter no topo das vendas. Hoje, os calçados possuem cabedal de lona resistente, viras laterais de borracha com biqueiras reforçadas para suportar o desgaste por repetição, ilhós de metal, colarinho acolchoado para dar apoio e flexibilidade e a sola Waffle de borracha, criada pela marca.
A combinação de toda essa engenharia resultou no tênis Era, que se tornou popular pelos lendários Z-Boys, um grupo de skatistas de Santa Monica e Venice Beach, na Califórnia, formado nos anos 1970 e considerado o mais influente da história do skate vertical. Fato é que o modelo continua sendo a escolha dos skatistas, surfistas e criativos ao redor do mundo até os dias de hoje.
Foi também nessa época que surgiu o slogan Off The Wall - que significa fazer manobras ou truques fora do convencional, indo além dos limites - em um evento promovido pela Vans em 1976. Na ocasião, Tony Alva, um dos originais do Z-Boys, superou os limites da rampa pela primeira vez. Muito admirado, Alva era tido como uma figura selvagem e livre, algo que fazia muito sentido para o público entre o qual a marca se popularizou. Por isso, a expressão Off The Wall passou a nortear o espírito da marca.
Nesse movimento, a Vans incorporou essa mentalidade em seu logotipo, transmitindo a ideia de liberdade, individualidade e autoexpressão, atributos que não são exclusivos daqueles que andam de skate. Por isso, os modelos da Vans a tornaram uma marca aspiracional, explica Mariana Cerone, professora de estratégias do varejo omnichannel da ESPM.
Seguindo pistas para entender o que fez a marca virar sinônimo de (estilo) cool - sem fazer muito esforço -, a especialista destaca que quem acompanha o universo sneaker (calçadista) sabe que os vinte anos entre 1980 e 2000 trouxeram itens clássicos e de diferentes marcas.
"Trata-se de um período em que muitas marcas e produtos entraram para a história no que diz respeito à cultura. Desde a década de 1960 a Vans lança tênis icônicos, como o Authentic, Era, Old Skool, que hoje são verdadeiros clássicos", diz.
Desde então, mais do que focar na venda de tênis, a marca passou a investir em eventos esportivos (e assim segue até hoje). Essa forma de criar uma conexão com a comunidade também segue premissas importantes para seu público final.
São campeonatos sempre gratuitos e com premiações, direcionados para garotos e garotas, além de estarem atentos e apoiar esportes amadores e jovens revelações, como ocorreu com os skatistas Tony Hawk e Christian Hosoi.
E, ao que parece, muita gente quer fazer parte desse grupo. Segundo Mariana, são pessoas que às vezes não se identificam com o futebol ou o basquete, esportes bem mais difundidos no Brasil, mas curtem essa cultura de rua e adotaram Vans em suas vidas.
Outra observação importante da especialista é que, assim como atletas de várias modalidades começaram a usar a marca, celebridades também a levaram para seus looks. Ou seja, são pessoas de todas as tribos usando Vans de todos os tipos - estampados, pretos, coloridos ou básicos.
Um dos casos citados no livro é o Checkerboard Slip-On, um tênis retrô que remete a estampa xadrez e que foi criado porque muitas crianças pintavam seus calçados daquela forma. Em 1982, o ator Sean Penn entrou em uma das lojas, comprou o modelo e decidiu usá-lo em um filme da Universal Studios, o Picardias Estudantis, de forma natural - e claro, as vendas explodiram. Mais de 40 anos depois da criação do Checkerboard, o modelo vai e volta à tendência a cada três ou quatro anos.
Em outra história, Paul fala no livro sobre o primeiro ano da marca quando, mesmo sem perceber, já trabalhava com customização. Ao ser questionado por uma cliente se havia um tom de rosa mais claro ou cores diferentes, ele respondeu que não, mas que transformaria qualquer tecido que chegasse à loja em tênis. E o principal, cobraria menos de um dólar por essa personalização. E assim o fez muitas vezes.
É nessa ideia que a marca ainda navega. Para quem compra on-line é possível customizar os tênis com o que quiser. Cores, fotos da família, do cachorro, grafites ou o próprio nome podem ser impressos nos tênis que funcionam como uma tela em branco à disposição dos consumidores.
Comprada pela VF Corporation em 2004, a Vans também passou a apostar nos licenciados para atrair consumidores jovens. Estratégias como coleções exclusivas, com a Marvel, e pinturas de Van Gogh, a aposta pesada em personalização e o envolvimento da marca em arte, música, esportes e cultura de rua fazem da Vans muito atual.
CONSUMIDOR NO CENTRO
Ao citar o caso da skatista brasileira Rayssa Leal, que em uma parceria com a Nike colocou à venda um modelo de tênis que esgotou em apenas 20 minutos, Mariana destaca a relação que os brasileiros têm com essa categoria de produtos.
A especialista explica que a partir de diferentes dinâmicas de afeto e vínculo é que surgem os desejos de consumo, e nesse ponto, a Vans foi assertiva em abraçar um nicho de mercado inexplorado e até marginalizado, como o skate e um público que teoricamente teria menor orçamento para consumo, e colocá-lo no centro de seu negócio.
O estudo "Brasil Corre", produzido pela Consumoteca, indica que 16 milhões de brasileiros vivem nas periferias do país, um público que movimentou R$ 202 bilhões no último ano. Entretanto, o mesmo material mostra que esses consumidores muitas vezes são ignorados pelas marcas, que tendem a olhá-los apenas sob a ótica da renda.
Mariana reforça que, sendo diverso, composto por pessoas de diferentes faixas etárias, origens étnicas e culturais e enfrentando desafios socioeconômicos, os consumidores da periferia têm expectativas claras em relação às marcas que escolhem apoiar.
Muitos também buscam por representatividade e identificação com as marcas que escolhem e nem sempre têm preferências homogêneas por produtos mais baratos e tampouco têm como principal opção de compra o comércio informal.
"E isso não é problema, mas sim oportunidade. O jovem periférico faz questão de comprar o original quando o assunto é tênis, mesmo sendo um tíquete alto", diz Mariana. "A Vans soube aproveitar uma lacuna no mercado e conquistar clientes por conta de bons produtos e uma abordagem original. É uma lição de empreendedorismo".
IMAGEM: divulgação