Parcelado em apuros

O parcelamento sem juros está enraizado nos hábitos de consumidores e lojistas e responde por metade dos mais de R$ 700 bilhões movimentados a cada ano pelos cartões de crédito

Vitor França
08/Fev/2018
Economista pela FEA-USP e mestre em economia pela FGV-SP
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Parcelado em apuros

Costumamos chamar de jabuticaba aquelas coisas que parecem existir somente no Brasil, como a nossa tomada de três pinos e o parcelamento sem juros no cartão de crédito.

No caso do parcelamento sem juros, mais do que uma jabuticaba, trata-se de uma verdadeira contradição em termos.

A taxa de juros, afinal, é o valor do dinheiro no tempo: quem empresta dinheiro, abrindo, com isto, mão de consumo no presente, é remunerado com juros; quem toma emprestado, por sua vez, antecipando o consumo com recursos que ainda não tem, paga juros pelo empréstimo.

Na prática, portanto, não existe parcelamento sem juros.

O lojista, ao parcelar as vendas nesta modalidade, tem dois custos diretos: o da taxa de desconto, paga sobre o valor de cada venda à empresa dona da maquininha –que é mais alta, nas vendas parceladas, do que nas vendas no débito ou em uma única parcela no cartão de crédito – e o custo financeiro de receber o valor em parcelas mensais.

Estes custos tendem, inevitavelmente, a ser repassados para os preços das mercadorias, de forma que, em maior ou menor grau, lojistas e consumidores acabamos pagando por eles.

No país do jeitinho, com histórico de inflação elevada, o que inventamos foi um jeito de mascarar o princípio econômico básico de que o dinheiro tem um valor no tempo.

Se o sistema tem lá as suas vantagens, como praticidade para consumidores e vendas maiores para lojistas, também tem aspectos distributivos negativos.

Quem paga um produto à vista, em dinheiro e sem desconto, por exemplo, está subsidiando um consumidor que compra em parcelas no cartão de crédito e ganha juros sobre o valor a ser pago.

O maior prazo de recebimento do lojista, por sua vez, está subsidiando o maior prazo de pagamento –sem juros –de quem compra com cartão de crédito.

Um fato, porém, é que, desde o passado, com o cheque pré-datado, o parcelamento sem juros parece profundamente enraizado nos hábitos de consumidores e lojistas brasileiros.

Não é à toa que as vendas parceladas respondem por metade dos mais de R$ 700 bilhões movimentados anualmente pelos cartões de crédito no país.

AMEAÇA À RECUPERAÇÃO

A proposta de acabar com a modalidade, assim, pode representar uma ameaça à recuperação incipiente do consumo e, por isso, parece estar sendo utilizada por representantes do setor com o objetivo de direcionar as discussões em torno das medidas para reduzir os custos sociais dos meios eletrônicos de pagamento.

A redução desses custos, vale ressaltar, é fundamental para a expansão dos pagamentos eletrônicos, que trazem uma série de benefícios para a sociedade, tais como segurança, praticidade, controle e redução de despesas com transporte e armazenagem de valores, entre outros.

Um sistema de pagamentos ideal deveria ser o mais simples, neutro e transparente possível. Por se tratar de um mercado de dois lados, porém, atualmente repleto de subsídios cruzados, qualquer alteração tende a impactar todos os elos da cadeia de pagamentos (varejo, consumidores, emissores, credenciadoras, governo, etc.).

Um exemplo de mudança: a cobrança de juros nas vendas parceladas transferiria os custos que hoje são divididos entre lojistas e consumidores para os consumidores que compram a prazo –e passariam a pagar juros –, também com possíveis impactos nas vendas do comércio e na própria migração dos pagamentos.

A medida parece razoável de um ponto de vista estritamente econômico, mas poderia prejudicar tanto os consumidores habituados ao parcelamento, como as vendas e o emprego do comércio, que dão apenas os primeiros sinais de recuperação.

Além disto, uma vez que o parcelamento sem juros parece profundamente enraizado nos hábitos de consumo do brasileiro, o fim do parcelamento no cartão de crédito poderia estimular a volta do já quase extinto cheque pré-datado, acarretando em maiores custos de compensação e liquidação, estimulando a informalidade e elevando a inadimplência dos lojistas.

Medidas para incentivar a expansão dos meios eletrônicos e a inclusão financeira, portanto, exigem uma avaliação criteriosa de custos e benefícios para todos os envolvidos, contemplando inclusive os eventuais ganhos sociais.

É preciso pensar também em um processo de transição que não coloque a expansão do sistema em risco.

Além disto, todas as medidas possíveis precisam ser colocadas na mesa, discutidas e avaliadas. Um tema importante, por exemplo, mas que tem ficado de fora do debate, é a mudança na taxa de intercâmbio –parcela da taxa de desconto, paga pelos lojistas, que é repassada pela dona da maquininha ao emissor do cartão que realizou a compra.

Esta taxa, que aumentou desde a abertura do mercado de credenciamento em 2010, é um componente fundamental para a formação da taxa de desconto e, portanto, afeta o custo para lojistas e consumidores.

DEBATE RESTRITO

Há uma agenda positiva em jogo, que é a substituição do dinheiro em espécie e do cheque pelos meios eletrônicos de pagamento, de forma que, para além da discussão sobre a repartição dos ganhos e custos do modelo atual, é preciso pensar em como promover o crescimento saudável de instrumentos que reduzam custos sociais e coíbam a informalidade.

Atualmente, porém, o debate parece restrito à disputa entre os grandes varejistas e o setor financeiro, com risco de que os custos de eventuais mudanças acabem sendo repassados para consumidores e pequenos lojistas.

Enquanto o varejo briga pela redução do prazo de recebimento das vendas no cartão de crédito, o setor financeiro, beneficiado pela concentração e pela verticalização do mercado de cartões, age de forma organizada na apresentação de propostas –ou seriam ameaças? – como o fim do parcelamento sem juros, que traria prejuízos para a economia brasileira a curto prazo.

Assim, por se tratar de uma questão que não é meramente técnica, mas, também, política (uma vez que envolve conflitos distributivos), o debate precisa contar com a mediação dos órgãos reguladores e também de agentes independentes, com o objetivo de se perseguir um maior equilíbrio entre as partes e garantir o avanço dos pagamentos eletrônicos e da inclusão financeira no Brasil.

FOTO: Thinkstock

 

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