O financiamento de litígios como mecanismo de acesso à Justiça
O 'alternative legal financing', ou 'third-party litigation funding', é uma prática recente, ainda pouco difundida e explorada no mercado nacional, mas que ganha forças como opção para resolver o impasse
*com Bruno Maglione, advogado especializado nas áreas de contencioso cível e arbitragem
Em nosso último artigo, antes dos desdobramentos envolvendo a Covid-19, destacamos que a dificuldade econômica não justificará o afastamento da arbitragem e, ainda, que a situação poderia ser contornada através do third-party litigation funding.
Pois bem. Após duas semanas de quarentena social, com decretos municipais e estaduais determinando o fechamento de boa parte do comércio, as discussões passam a ser mais entre lockdown horizontal vs lockdown vertical do que sobre o vírus em si, exatamente porque já se pode sentir, ao menos antever, quais serão os efeitos econômicos vinculados à Covid-19.
Descumprimento contratual, exceção de contrato não cumprido, conservação dos contratos, força maior e outros tantos institutos do Direito das Obrigações, passam a ser invocados diante de um contexto global que foi fortemente abalado.
Nesse sentido, partes e advogados precisarão mais do que nunca do bom senso e da boa-fé para resolver as questões amigavelmente e evitar uma enxurrada de novos litígios.
Será muita ingenuidade imaginar que os litígios não aumentarão. Contudo, a despeito da existência de pessoas oportunistas e mal-intencionadas, é importante ressaltar que existirão muitas situações em que as questões contratuais atingidas são de alta complexidade e o litígio será inevitável para resolução do conflito.
Considerando que a crise econômica será inevitável, oportuno a retomada da discussão sobre o third party fund para financiamento dos inúmeros litígios (judiciais e arbitrais) que surgirão.
O financiamento profissional de litígios, também conhecido como alternative legal financing ou third-party litigation funding, é uma prática recente, ainda pouco difundida e explorada no mercado nacional, mas que ganha forças como opção para resolver o impasse.
O mecanismo é fundamentalmente simples. Por meio dele, um terceiro se propõe a custear as despesas de uma arbitragem ou de uma demanda judicial. Em contrapartida, a parte beneficiada pelo financiamento se compromete a repassar um valor fixo ou fração do proveito econômico que será obtido em caso de um desfecho favorável do litígio.
O financiamento profissional de litígios se trata, portanto, de um investimento, por meio do qual o financiador assume para si o risco de não receber retorno financeiro na eventualidade de um insucesso da demanda arbitral/judicial.
Por outro lado, no que tange àquele que recebeu o financiamento, trata-se de uma oportunidade para o acesso à Justiça, a despeito de eventualmente ter optado por dispensar a jurisdição estatal.
Custear demanda de um terceiro ou mesmo obter lucro com litígios alheios eram práticas consideradas criminosas na Inglaterra, ao menos na Idade Média, quando o financiamento começou a ser praticado.
A vedação desta prática tinha como propósito coibir que os financeiramente mais favorecidos pudessem interferir nas demandas judiciais, em detrimento dos interesses da administração da justiça.
O Brasil ainda caminha a passos curtos rumo à absorção e normatização do financiamento de litígios e a Constituição Federal, em seu artigo 5º, LXXIV, estabelece que “o Estado prestará assistência judiciária integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.
Com efeito, a legislação brasileira confere à parte litigante a prerrogativa de acessar o Poder Judiciário sem custos, desde que devidamente demonstrada e comprovada sua hipossuficiência financeira.
Adicionalmente, a Constituição Federal também conferiu aos menos favorecidos a possibilidade de serem representados em Juízo por um operador do direito custeado pelo próprio Estado. Para tanto, o artigo 134 da Carta Magna instituiu a Defensoria Pública, entidade criada exclusivamente para esta finalidade.
O third-party funding, como demonstrado, não tem natureza de empréstimo, mas sim de um investimento (de risco), totalmente vinculado ao eventual êxito de uma demanda judicial ou arbitral.
O financiamento de litígio, portanto, trata-se de uma modalidade de negócio jurídico (pode ser via cessão de direitos), cujos requisitos de validade estão previstos em norma infraconstitucional, mais precisamente no Código Civil. E não havendo vícios que o maculem, não há que presumir sua inaplicabilidade (artigo 286 do Código Civil).
O procedimento arbitral, portanto, precisa ser efetivamente visto como uma opção escolhida pelos contratantes e, consequentemente, respeitar sua força vinculante é essencial para manutenção do sistema e da sua credibilidade, ressaltando que os contratantes poderão, ao firmar os instrumentos, optar por (i) privilegiar o acesso à Justiça Comum com a inserção de cláusula padrão com eleição de foro, garantindo ao Poder Judiciário jurisdição e, ao mesmo tempo, garantindo que a ausência de capacidade econômica para custear o processo não será um óbice para obtenção de qualquer tutela jurisdicional, ou, ainda, (ii) privilegiar o procedimento arbitral, ciente de que eventual hipossuficiência econômica poderá ser contornada através do financiamento profissional de litígios (third-party litigation funding), que embora ainda seja pouco difundido e explorado no mercado nacional, tem ganhado forças e cada vez mais relevância.
Há diversas dúvidas e questionamentos sobre o third-party litigation funding, como confidencialidade, eventual conflito de interesses, inclusive entre financiador e financiado, isso para mencionar apenas alguns. Mas isso abordaremos em nova oportunidade.
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