Não existe parcelamento grátis
Não se trata de ser a favor ou contra o fim do parcelamento sem juros no cartão de crédito, mas de entender o atual equilíbrio de mercado e quais seriam os impactos de eventuais mudanças para todos os envolvidos na cadeia de pagamentos
A proposta do setor financeiro de passar a cobrar juros nas compras parceladas no cartão de crédito mexeu com os ânimos dos demais agentes envolvidos na cadeia de pagamentos.
O varejo, que costuma reclamar do elevado prazo de recebimento das vendas na modalidade, já se posicionou contra a medida, alegando que ela poderia prejudicar as vendas.
Para representantes do setor, a modalidade não pode ser extinta e caberia ao lojista decidir a respeito da forma em que vai realizar as vendas.
A FecomercioSP, por exemplo, aproveitou o debate para defender o livre mercado com argumentos de que “o mercado seria responsável por definir as condições em que opera” e “interferências do Estado [...] tendem a gerar resultados prejudiciais ao comércio”.
A fé nas virtudes do mercado pode cegar. Basta lembrarmos a importância da ação dos reguladores na promoção da concorrência no mercado de maquininhas, que resultou na queda das taxas pagas pelos lojistas nas vendas com cartão.
Em 2010, a ação dos reguladores eliminou as exclusividades que existiam entre a bandeira Visa e a credenciadora Visanet (que mudou o nome para Cielo) e a bandeira Mastercard e a Redecard (hoje Rede).
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Novos competidores entraram no mercado oferecendo maquininhas que aceitavam ambas as bandeiras e o aumento da competição derrubou a taxa de desconto do cartão de crédito, que passou de 2,95% em 2009 para 2,78% em 2011, mantendo-se estável neste patamar até 2015.
A estabilidade pode ser explicada pelo surgimento de novas barreiras à competição. A partir de 2010, bandeiras nacionais, de propriedade de grandes bancos e exclusivas de suas credenciadoras, passaram a ganhar mercado e limitar a concorrência entre as maquininhas.
Além disto, a taxa de intercâmbio – parcela da taxa de desconto repassada ao emissor do cartão – subiu no período (de 1,36% em 2011 para 1,58% em 2015, no caso do cartão de crédito).
Uma explicação para a alta é que os grandes bancos, donos das principais credenciadoras, podem tratar o negócio de cartões de forma integrada e compensar a perda de margem destas empresas com aumento da receita de intercâmbio.
Novas credenciadoras, não ligadas a bancos –e cuja escala da operação é menor, resultando em maiores custos por transação –, viam reduzida sua capacidade de competir, já que não podiam oferecer as bandeiras nacionais e ainda tinham suas margens comprimidas pelo aumento do intercâmbio.
Ficava evidente, com isto, o prejuízo à competição decorrente de um mercado verticalizado, com os grandes bancos (emissores) donos das principais credenciadoras.
A ação do Banco Central (BC) de proibir exclusividade entre bandeiras nacionais e credenciadoras foi, portanto, outro passo importante para incentivar a concorrência.
Em 2016, todas as maquininhas passaram a aceitar as principais bandeiras e, com isto, a taxa das vendas no cartão de crédito voltou a cair, passando de 2,77% em 2015 para 2,65%.
Não foram apenas os lojistas que ganharam. A entrada de empresas derrubou as taxas e viabilizou o surgimento de novas soluções de pagamento, incentivando a expansão dos meios eletrônicos, que trazem benefícios sociais como segurança, praticidade e formalização.
O mercado, agora, parece aproximar-se de um novo ponto de inflexão. Representantes do varejo, insatisfeitos com os elevados custos dos cartões –insatisfação legítima, diga-se de passagem –, passaram a defender a redução do prazo de recebimento dos lojistas.
O setor financeiro, então, fez sua proposta: reduz-se o prazo dos lojistas, mas passa-se a cobrar do consumidor juros nas vendas parceladas.
A conta é simples. O dinheiro tem valor no tempo: a taxa de juros. Hoje, o prazo de recebimento dos lojistas subsidia o prazo de pagamento dos consumidores, que só liquidam as compras com cartão no vencimento da fatura.
Com a redução do prazo dos lojistas, os consumidores passariam a arcar com os juros nas compras a prazo.
Os bancos, assim, compensariam o fim das receitas da antecipação de recebíveis – consequência da redução do prazo aos lojistas –com os juros que passariam a ser pagos pelos portadores de cartão.
Caso o prazo de pagamento aos lojistas seja reduzido pelo regulador, por exemplo, mas sem a possibilidade de cobrança de juros do consumidor pelos bancos, é provável que o custo do dinheiro no tempo seja repassado a uma outra taxa, como a do rotativo ou mesmo a de desconto, o que, por sua vez, poderia inviabilizar o parcelamento sem juros.
O sucesso do parcelamento depende também dos limites de crédito no cartão disponibilizados pelos bancos. O aumento do custo para os emissores decorrente do menor prazo de pagamento aos lojistas teria efeito sobre a oferta de crédito, com impacto também nas compras parceladas, que demandam disponibilidade de limite dos clientes.
Não se trata, portanto, de ser a favor ou contra o fim do parcelamento sem juros, mas de entender o equilíbrio de mercado e quais seriam os impactos das mudanças para toda a cadeia de pagamentos.
Uma saída seria o próprio varejo passar a ofertar o parcelamento sem juros, o que não é simples nem barato. A solução de mercado mais provável neste caso seria a volta do cheque pré-datado, com a transferência da inadimplência e das despesas com avaliação de crédito (hoje nos emissores) para o varejo e aumento dos custos sociais associados à modalidade, como informalidade e sonegação.
Pressões de setores organizados são naturais em qualquer democracia. O varejo também precisa se organizar e decidir se apoia uma ação do regulador ou se o mercado deve encontrar livremente o equilíbrio.
O consumidor, que arca com parte dos custos envolvidos na cadeia de pagamentos, também precisa ser levado em consideração.
A ação do BC, contudo, me parece fundamental na definição de medidas que promovam a competição, corrijam as distorções do mercado e incentivem a expansão dos meios eletrônicos.
Tais medidas exigem uma avaliação criteriosa de custos e benefícios para todos os envolvidos, contemplando-se também os ganhos sociais, os quais não são levados em conta nas soluções de mercado.
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