Indústria da moda começa a se reinventar para passar de vilã a heroína
Instituto C&A, dirigido por Giuliana Ortega (foto), se alinha à líder varejista para incentivar todos os elos da cadeia a tornarem-se mais responsáveis. A tarefa vai exigir muitas alianças
Ao comemorar 25 anos de atuação no Brasil, o Instituto C&A assumiu publicamente uma missão que pode ser considerada temerária – tornar a indústria da moda mais justa e sustentável.
Ambicioso ou utópico, o objetivo do braço de investimento social privado da C&A passou a valer também para todas as entidades ligadas à C&A Foundation no mundo. A nova missão tem a expectativa de modificar uma das mais importantes e complexas cadeias produtivas do planeta e também uma das maiores empregadoras.
Com um trabalho reconhecido de monitoramento da cadeia de fornecimento, a C&A incumbiu a C&A Foundation de liderar os esforços em âmbito global.
A organização tem consciência do tamanho da tarefa. “Temos como princípio não trabalhar sozinhos”, explica Giuliana Ortega, diretora executiva da organização no Brasil. O instituto pretende atuar em conjunto com as entidades setoriais, as organizações civis, o poder público e também com as outras marcas de varejo. “Não existe concorrência dentro deste projeto”, enfatiza Giuliana.
TAREFA HERCÚLEA
Para assumir a tarefa, o instituto se apoia no próprio histórico. Até então, a atuação no Brasil se concentrara na área de educação.
O balanço de 25 anos mostra, além da experiência adquirida como articuladora de redes de parceiros, a aplicação de US$ 125 milhões em 2 mil projetos em mais de 100 cidades, que alcançaram 1 milhão de pessoas, entre crianças, jovens e professores.
Líder de varejo de moda no Brasil, a C&A segue assim uma tendência internacional entre institutos e fundações mantidos por empresas, a de tornar as causas mais próximas do negócio principal.
Campeão do glamour no mercado de consumo, o mundo da moda não tem brilhado no teste de cuidados com a sociedade e o planeta. O cenário só piorou com a correria e os volumes de produção da fast fashion.
Acusada de ser uma das mais poluentes, de promover más condições de trabalho e incentivar o consumismo, a indústria da moda começa a mostrar interesse em rever seus processos produtivos e a buscar modelos de negócios com menos prejuízos para o meio ambiente e a sociedade.
O compromisso exposto pela principal executiva da entidade foi referendado também pelo presidente da C&A, Paulo Correa.
“Nesta segunda fase do instituto, sentimos necessidade de ocupar papel mais importante do que temos na cadeia de moda como um todo. Por meio dele, queremos promover e oferecer produtos sustentáveis, ter uma cadeia de fornecimento mais sustentável e justa. E que as vidas envolvidas sejam mais sustentáveis.”
Na visão da empresa, a transparência é necessária para que fique claro para o consumidor a responsabilidade de cada elo da cadeia de produção que está por trás, por exemplo, de uma simples camiseta branca.
NOVOS TEMPOS
Entre as entidades do país, a magnitude dos números do Instituto C&A impressiona. E precisarão continuar a impressionar.
As entidades locais ligadas à C&A Foundation passaram a ter seus recursos e ações totalmente direcionados para melhorar as condições sociais e ambientais da cadeia produtiva em direção à moda sustentável. Para o Brasil, ficou definido um investimento de R$ 33 milhões para 2016, um aumento de quase um terço em relação a 2015.
De acordo com Giuliana Ortega, foram selecionadas globalmente três frentes de atuação, consideradas entre as prioridades atuais da indústria – combate ao trabalho forçado ou análogo ao escravo, melhores condições de trabalho e incentivo ao algodão sustentável. “Queremos atuar sobre questões em que podemos ser mais efetivos”, explica a executiva.
1 TRABALHOS FORÇADOS
Antes de assumir a direção da entidade, Giuliana ocupava o cargo de gerente de sustentabilidade da rede de varejo e foi responsável pelo programa de auditoria e desenvolvimento da cadeia de fornecedores do magazine, implantado em 2006.
Tudo começou em 2003, quando a C&A se viu envolvida em uma denúncia de exploração de trabalho forçado na produção de vestuário. A partir daí, desenvolveu sua própria metodologia para monitorar a rede de fornecimento, que se tornou um modelo no setor de varejo, além de signatária do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo.
Um dos resultados do trabalho compartilhado com organizações setoriais foi a criação da Certificação de Fornecedores da Associação Brasileira de Varejo Têxtil (ABVTEX), entidade que reúne os principais players do setor no Brasil. Cerca de 20 grandes empresas do setor se comprometeram a disseminar a certificação dentro de sua cadeia
O certificado simplifica os processos para que as empresas de varejo monitorem seus fornecedores quanto às boas práticas de responsabilidade social e relações do trabalho, o que favorece o mercado como um todo.
Grande parte do mercado, no entanto, não está sensibilizada para o tema. Das 33 mil empresas ligadas à indústria da moda no Brasil, a maioria absoluta é constituída por pequenas e médias empresas.
Dentro da C&A, de acordo com o presidente, o programa envolve várias ações para garantir que a cadeia cumpra com as normas estabelecidas no código de conduta global de fornecimento.
Depois de uma primeira fase dedicada ao monitoramento da cadeia, o programa se voltou para o fortalecimento e capacitação das empresas homologadas. Com a nova iniciativa do instituto, a rede varejista pretende usar essa experiência para ampliar o alcance dessa discussão.
A entidade trabalha com diversas organizações especializadas no apoio às vítimas de trabalho forçado e escravo e também com trabalho infantil. O primeiro local de atenção monitorado é a Região Metropolitana de São Paulo, onde se concentram as pequenas oficinas de costura.
“Ali trabalham dezenas de milhares de imigrantes latino-americanos”, explica Giuliana, “muitos em condições degradantes, por salários irrisórios e às vezes em condições análogas à escravidão, como definido pela legislação brasileira.”
2 CONDIÇÕES DE TRABALHO
No segundo campo em que o instituto passou a atuar, duas questões estão embicadas quando se trata de condições de trabalho - a informalidade e a presença maciça da mão de obra feminina.
No Brasil, de quase 2 milhões de trabalhadores registrados, 75% são mulheres. Não se sabe o peso da informalidade nas relações de trabalho. No mundo, chega a 60%. Além de trabalhar em condições sobrehumanas de carga horária, as costureiras ainda precisam achar tempo para a jornada doméstica.
“Nosso projeto de transformação da indústria da moda”, ressalta Giuliana, “tem por objetivo final trazer melhores condições de vida a quem trabalha no setor e a suas famílias.”
De acordo com a executiva, melhorar as condições de trabalho, saúde, segurança e conhecimento está diretamente ligado a promover a boa gestão de fábricas e oficinas de costura.
O instituto, em seus estudos de cenários, observou que não basta identificar e retirar as vítimas de trabalhos degradantes das oficinas. “Se não tiverem apoio e orientação, a volta ao local será a única alternativa para os imigrantes.”
O programa prevê uma abordagem sistêmica do problema. Inclui oferecer condições que facilitem a vida dessa trabalhadora, como encontrar creche para os filhos, pressionar para a criação de mecanismos que fortaleçam a legislação existente, dar condições de reabilitação a quem foi vítima e formar redes de organizações, empresas e poder público para enfrentar o problema em conjunto.
3 INCENTIVO AO ALGODÃO SUSTENTÁVEL
O algodão continua a ser a fibra mais usada no setor têxtil em todo o mundo e no Brasil. O país ocupa a posição de quinto maior consumidor mundial do produto e de terceiro maior produtor. Como ocorre com o restante da indústria da moda, a Ásia domina mais da metade da produção e consumo.
A matéria-prima entrou na mira das organizações socioambientais pelo uso intensivo de água e de agrotóxicos agressivos ao meio ambiente e à saúde dos trabalhadores rurais e famílias.
A solução, na visão das organizações socioambientais, está no algodão orgânico e no que é certificado por entidades como a Better Cotton Initiative (BCI). No entanto, a matéria-prima produzida em condições sustentáveis representa apenas 1% do volume do que é comercializado no mundo. Para melhorar esse número, a C&A assumiu dois compromissos.
Para a própria empresa, ficou estabelecida a meta global até 2020 de ter em seus produtos 100% de algodão sustentável. A companhia já é a maior usuária desse tipo de algodão no mundo.
Já as entidades ligadas às iniciativas sociais da marca devem concentrar esforços para estimular a produção e consumo do algodão sustentável para alcançar o patamar de 15% em 2020.
A experiência iniciada pela C&A e suas entidades pode ser conhecida no documentário For the Love of Fashion (Por amor à moda), feito em parceria com o canal de TV a cabo da National Geographic.
Apresentado por Alexandra Cousteau, neta do ambientalista francês Jacques-Yves Cousteau, o filme de 45 minutos aborda o cultivo do algodão orgânico e o impacto de seu uso nos produtos levados ao consumidor.
No Brasil, o Instituto C&A encontrou uma situação ambígua. O país se tornou o principal produtor de algodão com certificação BDI no mundo, um movimento originado entre os grandes produtores. No entanto, a sociedade e o mercado não sabem disso e os produtores não conseguem usufruir dessa vantagem em termos de valor agregado ou reputação.
Quanto à produção de algodão orgânico, concentrada no Nordeste, trata-se de uma atividade típica de pequenas propriedades e vem sendo difundida a passo de tartaruga.
Por isso, no Brasil, a tarefa não consiste apenas em incentivar a produção, mas também a demanda da indústria da moda pelo algodão sustentável, fundamental para aumentar o interesse dos grandes produtores e dar segurança de venda para os pequenos.
Como se vê, há um longo caminho pela frente. Pelas experiências vividas por outras cadeias de produção, como a do aço, a conquista da sustentabilidade pelo indústria da moda pode levar até 10 anos. Será uma tarefa principalmente para quem faz parte da geração Y, que já vem apresentando novos comportamentos tanto como consumidora quanto empreendedora.
IMAGEM DE ABERTURA: Paulo Leite
FOTOS: Divulgação