Herança bendita
Ao contrário dos últimos períodos de transição, o novo governo assumirá país com conjuntura econômica bastante favorável

Com Flávio Calife, economista da Boa Vista SCPC
Passamos mais uma vez por uma eleição presidencial bastante disputada e polarizada –o que parece ter se tornado regra no Brasil.
Além da polarização, outro elemento comum observado em momentos de transição, agora no que se refere especificamente à economia, é que os novos governos chegaram ao poder com um sentimento de terra arrasada.
Ouvimos, por exemplo, presidentes reclamarem da herança “maldita” recebida de seu antecessor ou das dificuldades que teriam para “recolocar o Brasil nos trilhos”, como afirmou o atual presidente Temer ao assumir o legado de Dilma Roussef.
Será que, também desta vez, o próximo presidente terá motivos para reclamar do legado econômico de seu antecessor? A resposta, ao que parece, é negativa. Mas vamos aos fatos.
Desde a estabilização da economia brasileira, a partir de 1994, o país teve quatro presidentes: FHC (PSDB), Lula (PT), Dilma (PT) e Temer (PMDB).
Em dois momentos houve alternância do partido no poder: em 2003, quando Lula substituiu FHC, e em 2016, quando Temer substituiu Dilma.
Apesar da mudança na metodologia de cálculo de alguns índices, é possível estabelecer comparações para os principais indicadores econômicos em cada um desses períodos.
Tanto no início de 2003 quanto em meados de 2016, o novo presidente assumia o país com uma conjuntura bastante desfavorável.
Conforme é possível observar nos gráficos abaixo, nos dois momentos a inflação acumulada em 12 meses estava elevada, com tendência de alta, assim como as taxas de juros.
O nível de desemprego era elevado, próximo à máxima histórica no início de 2003 e com forte tendência de alta em 2016, enquanto as vendas do varejo registravam queda no acumulado de 12 meses – em 2016, particularmente, o setor varejista registrava o pior desempenho na série histórica iniciada em 2002.

No mercado de crédito o cenário era igualmente desfavorável em ambos os períodos, especialmente por conta do recuo dos novos empréstimos, sendo que em 2016, novamente, eles registravam o pior desempenho da série histórica quando é considerada a variação acumulada em 12 meses.
Já a inadimplência da carteira de crédito com recursos livres era relativamente baixa no início de 2003, com ligeira tendência de alta, enquanto em meados de 2016 ela havia subido bastante e se encontrava próxima aos recordes históricos registrados em 2012.

A conjuntura desfavorável impôs aos novos presidentes uma agenda reformista urgente: o Governo Lula aprovou uma reforma da Previdência ainda no primeiro ano de governo, enquanto o Governo Temer conseguiu estabelecer um teto para o crescimento dos gastos públicos.
Além disto, ambos enfrentaram o desafio de controlar a inflação, o que exigiu uma política monetária austera – a qual, em ambos os casos, já estava em curso –, que, por sua vez, afetou negativamente o mercado de trabalho, o mercado de crédito e, consequentemente, as vendas do comércio varejista, especialmente em segmentos como vestuário, móveis e eletrodomésticos, mais dependentes das condições de financiamento.
Após um início de governo desafiador, pode-se dizer que, do ponto de vista estritamente econômico, tanto o governo Lula quanto o governo Temer foram competentes ao recuperar a estabilidade econômica e garantir as condições para a retomada do crescimento. Colaborou para isto também a capacidade de restabelecerem a confiança dos agentes econômicos.

O novo governo eleito em 2018, por outro lado, já assume o país com conjuntura econômica bastante favorável.
Afinal, ao contrário dos períodos de transição de FHC para Lula e de Dilma para Temer, hoje os principais indicadores econômicos apresentam tendência positiva, com inflação estável em torno do centro da meta, desemprego elevado, mas em queda, crescimento dos empréstimos e das vendas do varejo, inadimplência baixa e taxas de juros nos menores patamares da história, reflexo de uma política de estabilização muito bem conduzida nos últimos dois anos.
Além disso, ao contrário das eleições de 2002 e 2014, períodos de turbulência pré e pós-eleitoral, saiu vitorioso do pleito o candidato mais alinhado com a visão predominante entre os agentes do mercado financeiro -o que já vem se refletindo em indicadores como o Ibovespa e o dólar.
Em suma, o novo governo assumirá a condução da economia em 2019 com um caminho mais livre, com muito menos obstáculos, o que lhe dará condições plenas de se dedicar quase que exclusivamente a reformas estruturais, como a da Previdência. Para isto, ainda deverá ter a vantagem de contar com a maioria no Congresso.
Diante do rápido crescimento da dívida pública, um novo e longo ciclo de crescimento econômico segue condicionado à apresentação e aprovação dessas propostas.
As bases para o crescimento, neste momento, porém, estão muito mais sólidas do que em transições anteriores, quando a conjuntura econômica era bem menos favorável.
Os desafios para equilibrar as contas públicas não são pequenos, é importante que se ressalte. Mas caso a economia volte a sair dos trilhos, ficará difícil colocar a culpa de qualquer insucesso na herança “bendita” de seu antecessor.
FOTO: Tânia Rêgo/Agência Brasil