“Erro o tempo todo, aprendo porque erro”

Carlos Ghosn entende de crises e coleciona sucessos. À frente de um império empresarial, o presidente da Renault-Nissan se tornou o exemplo moderno de líder com dedicação ilimitada à sua missão

Inês Godinho
12/Dez/2016
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“Erro o tempo todo, aprendo porque erro”

No Japão, o obentô corresponde ao nosso tradicional almoço comercial. Quem entra nos restaurantes populares em Tóquio pode escolher no cardápio o prato com os ingredientes preferidos. Um deles tem o nome de Obentô Carlos Ghosn.

A sequência de fatos que levou o presidente do consórcio Renault-Nissan a passar de inimigo público número 1 dos trabalhadores japoneses à rara honraria de nomear um prato constitui uma das grandes sagas empresariais modernas.

Para quem conhece a história de Ghosn, contudo, não se trata de um case isolado. Grandes viradas em situações críticas representam a essência da carreira do executivo, nascido no Brasil, criado no Líbano e formado na França. 

OLHOS DE ÁGUIA - ESTILO DE GESTÃO PROVOCA ADMIRAÇÃO E MEDO

A mais recente, anunciada no meio do ano, envolve a aquisição da Mitsubishi Motors pela Nissan Motors por US$ 2,2 bilhões. Nomeado presidente do Conselho de Administração da Mitsubishi, Ghosn assumiu a missão de recuperar a reputação da fabricante, implodida após o escândalo por ter fraudado dados de emissões poluentes no Japão. Uma tarefa para samurais, que combina com a aura heróica com que passou a ser visto no país. 

Primeiro executivo internacional a acumular a presidência de duas multinacionais gigantes, Ghosn vale o peso em ouro. Na Nissan, recebe US$ 9,6 milhões por ano; na França, o pacote de remuneração equivale a € 7,2 milhões (no total, cerca de R$ 58 milhões). 

Mesmo ele tendo finalmente levado as empresas ao posto de quarto maior grupo automobilístico do mundo, seus rendimentos são motivo de grandes brigas com o governo francês, um dos grandes acionistas do consórcio.

EM TRÂNSITO PERMANENTE

Ghosn mantém-se ocupado quase 100% do tempo. Passa parte do mês em Paris, outro tanto em Tóquio e o restante em visitas às subsidiárias espalhadas pelo mundo, do Brasil à China, e em eventos oficiais com chefes de estado. Para esses compromissos, quase não precisa de intérprete – fala fluentemente português, inglês, francês e árabe. Só o japonês não conseguiu dominar completamente. 

ENCONTROS COM PRESIDENTES, COMO FRANÇOIS HOLLANDE, FAZEM PARTE DA ROTINA

Os deslocamentos são feitos no seu jato Gulfstream com autonomia de vôo, equipado para funcionar como escritório e casa. Dono de uma agenda organizada como um projeto de logística, Ghosn viaja à noite para economizar tempo - aproveita para dormir e ter alguns momentos de rara solidão. Nenhum minuto é perdido. Todo o grupo funciona ao ritmo dessas viagens.

Na vida pessoal, embora discreta, Ghosn repete a experiência dos grandes executivos, ser pai e marido ausente. O casamento de 27 anos terminou em 2012 e os quatro filhos levam a vida nos Estados Unidos, bem distantes do mundo corporativo.

Do Brasil, ele tem a nacionalidade. Nasceu em 1954, em Guajará-Mirim, em Rondônio, perto da fronteira com a Bolívia, neto de um empreendedor libanês que migrou para o Brasil no início do século 20. A saúde frágil do menino levou a família de volta ao Líbano. Três décadas depois, estava de volta ao país. 

O ESTILO “DEIXA COMIGO”

A primeira façanha que colocou luz no nome do executivo se desenrolou no Rio de Janeiro, para onde foi enviado pela Michelin para reabilitar a filial, paralisada pelos anos de hiperinflação vivida pelo Brasil. 

A experiência, bem sucedida, valeu como o embrião do futuro estilo Ghosn de gestão – trabalhar em condições adversas, integrar culturas muito diferentes, resolver problemas formando equipes multifuncionais, ter clareza na comunicação e implantar rapidamente mudanças na estrutura e criar sistemas de gestão de metas para recuperar a lucratividade. 

Depois de 18 anos na Michelin, em várias posições pelo mundo, Ghosn aceitou em 1996 o convite da Renault para a vice-presidência e a tarefa de colocar a empresa nos trilhos. Com carta branca, fez uma reestruturação radical para recuperar, em um ano, a lucratividade da empresa.

O sucesso levou ao convite para uma missão considerada impossível pelo mercado, o salvamento da japonesa Nissan, em 1999. Diante da situação de quase falência, ele adotou um receituário radical e temerário, em especial por se aplicar a uma economia fechada e corporativista como a japonesa. 

O executivo acabou com a promoção por idade e antiguidade e de emprego vitalício, sistema entranhado na cultura japonesa, cortou 21 mil empregos (14% do total de funcionários) e levou uma equipe formada por americanos e europeus para ocupar cargos-chave. Também fechou cinco fábricas e desmontou a intocável estrutura de fornecedores. Considerada a medida mais ultrajante, tornou o inglês o idioma oficial da Nissan. 

No segundo ano, estava ganha a aposta na qual ele arriscou o emprego, e a Nissan pôde apresentar balanço azul. Desde então, a indignação dos japoneses com o executivo se transformou em admiração e até endeusamento. Em 2002, a saga de Ghosn para tirar a Nissan do atoleiro foi relatada em um mangá, as típicas revistas de histórias em quadrinho com super heróis.  

CARRO ELÉTRICO 

A façanha habilitou o executivo a conquistar a presidência do consórcio Renault-Nissan e a partir para mais uma empreitada ambiciosa, e também considerada temerária pelo mercado: o desenvolvimento da primeira linha de carros elétricos fabricados em massa. 

NISSAN LEAF, A GRANDE APOSTA DE GHOSN

Como já tinha perdido a batalha do pioneirismo dos carros híbridos para o Prius da Toyota, resolveu entrar direto no mercado de mobilidade com zero emissão. Em 2007, por decisão de Ghosn, o consórcio investiu mais de US$ 5 bilhões para colocar o Nissan Leaf nas ruas americanas e japonesas três anos depois. “Começou uma nova etapa na história dos automóveis, silenciosa e respeitadora do meio ambiente”, ele se vangloriou na época.

Durante a crise mundial de 2008, o executivo tomou novamente medidas drásticas para blindar as empresas do furacão. Adotou o lema “nos recusamos a sacrificar o nosso futuro por problemas de hoje”. Deu certo.

Em outra demonstração de empenho, ganhou de vez a admiração dos japoneses ao comandar pessoalmente a recuperação das fábricas atingidas pela tragédia do tsunami e pela ameaça de contaminação da usina nuclear de Fukushima. 

ESTILO IMPLACÁVEL 

O estilo Ghosn de gestão tem merecido rasgados elogios em reportagens e livros. Entre suas qualidades, já foi descrito como de estilo direto e objetivo, prático e orientado para a execução e os resultados. Disciplinado, sempre delega funções à equipe.

Não se limita a reuniões de estratégias comerciais. Procura resolver problemas indo direto à origem, no interior das empresas, falando com empregados e fornecedores. 

Em sua trajetória, até hoje, não se conhece algum fracasso. Em entrevistas, ele atribui os bons resultados à capacidade de errar e corrigir a tempo. Resolver problemas e corrigir os erros das equipes, segundo ele, é o escopo prioritário da alta gestão das empresas. “O gestor maduro não é aquele que não erra, mas o que sente e descobre o erro antes de todos.”

OLHOS DE ÁGUIA

No entanto, mesmo admirado, o estilo de gestão de Ghosn tem seu lado sombrio. Em várias ocasiões, foi questionado pelas reclamações de excesso de trabalho e de pressão. Duas crises simbolizam o estilo implacável do executivo - a onda de suicídios entre funcionários da Renault na França; e nos Estados Unidos, o recall causado por erros na produção, atribuídos à pressão excessiva por prazos.

Descrito como hiperativo e impaciente, cobra resultados rapidamente. Nas reuniões com o staff, criou uma rotina de apresentações de poucos minutos e cobrança dura em público. Nem vice-presidente é poupado. O executivo demonstra horror à complacência e à zona de conforto. Parece permanentemente tomado por um senso de urgência e de precaução contra crises. 

Tem um cuidado especial com o sucesso, que considera uma fonte potencial de crise, pois “leva à complacência e às vezes à arrogância, tão comuns na indústria automobilística.”

Aos 61 anos, com seus olhos de águia, Carlos Ghosn parece manter a energia para continua a comandar um império. Entre erros e acertos, talvez sua lição mais importante para os líderes esteja nesta frase: “A vida de administrador é um eterno tentar, conferir os resultados e aprender. Gestão é uma forma de artesanato.”

Imagem: Divulgação

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