“Erro o tempo todo, aprendo porque erro”
Carlos Ghosn entende de crises e coleciona sucessos. À frente de um império empresarial, o presidente da Renault-Nissan se tornou o exemplo moderno de líder com dedicação ilimitada à sua missão
No Japão, o obentô corresponde ao nosso tradicional almoço comercial. Quem entra nos restaurantes populares em Tóquio pode escolher no cardápio o prato com os ingredientes preferidos. Um deles tem o nome de Obentô Carlos Ghosn.
A sequência de fatos que levou o presidente do consórcio Renault-Nissan a passar de inimigo público número 1 dos trabalhadores japoneses à rara honraria de nomear um prato constitui uma das grandes sagas empresariais modernas.
Para quem conhece a história de Ghosn, contudo, não se trata de um case isolado. Grandes viradas em situações críticas representam a essência da carreira do executivo, nascido no Brasil, criado no Líbano e formado na França.
A mais recente, anunciada no meio do ano, envolve a aquisição da Mitsubishi Motors pela Nissan Motors por US$ 2,2 bilhões. Nomeado presidente do Conselho de Administração da Mitsubishi, Ghosn assumiu a missão de recuperar a reputação da fabricante, implodida após o escândalo por ter fraudado dados de emissões poluentes no Japão. Uma tarefa para samurais, que combina com a aura heróica com que passou a ser visto no país.
Primeiro executivo internacional a acumular a presidência de duas multinacionais gigantes, Ghosn vale o peso em ouro. Na Nissan, recebe US$ 9,6 milhões por ano; na França, o pacote de remuneração equivale a € 7,2 milhões (no total, cerca de R$ 58 milhões).
Mesmo ele tendo finalmente levado as empresas ao posto de quarto maior grupo automobilístico do mundo, seus rendimentos são motivo de grandes brigas com o governo francês, um dos grandes acionistas do consórcio.
EM TRÂNSITO PERMANENTE
Ghosn mantém-se ocupado quase 100% do tempo. Passa parte do mês em Paris, outro tanto em Tóquio e o restante em visitas às subsidiárias espalhadas pelo mundo, do Brasil à China, e em eventos oficiais com chefes de estado. Para esses compromissos, quase não precisa de intérprete – fala fluentemente português, inglês, francês e árabe. Só o japonês não conseguiu dominar completamente.
Os deslocamentos são feitos no seu jato Gulfstream com autonomia de vôo, equipado para funcionar como escritório e casa. Dono de uma agenda organizada como um projeto de logística, Ghosn viaja à noite para economizar tempo - aproveita para dormir e ter alguns momentos de rara solidão. Nenhum minuto é perdido. Todo o grupo funciona ao ritmo dessas viagens.
Na vida pessoal, embora discreta, Ghosn repete a experiência dos grandes executivos, ser pai e marido ausente. O casamento de 27 anos terminou em 2012 e os quatro filhos levam a vida nos Estados Unidos, bem distantes do mundo corporativo.
Do Brasil, ele tem a nacionalidade. Nasceu em 1954, em Guajará-Mirim, em Rondônio, perto da fronteira com a Bolívia, neto de um empreendedor libanês que migrou para o Brasil no início do século 20. A saúde frágil do menino levou a família de volta ao Líbano. Três décadas depois, estava de volta ao país.
O ESTILO “DEIXA COMIGO”
A primeira façanha que colocou luz no nome do executivo se desenrolou no Rio de Janeiro, para onde foi enviado pela Michelin para reabilitar a filial, paralisada pelos anos de hiperinflação vivida pelo Brasil.
A experiência, bem sucedida, valeu como o embrião do futuro estilo Ghosn de gestão – trabalhar em condições adversas, integrar culturas muito diferentes, resolver problemas formando equipes multifuncionais, ter clareza na comunicação e implantar rapidamente mudanças na estrutura e criar sistemas de gestão de metas para recuperar a lucratividade.
Depois de 18 anos na Michelin, em várias posições pelo mundo, Ghosn aceitou em 1996 o convite da Renault para a vice-presidência e a tarefa de colocar a empresa nos trilhos. Com carta branca, fez uma reestruturação radical para recuperar, em um ano, a lucratividade da empresa.
O sucesso levou ao convite para uma missão considerada impossível pelo mercado, o salvamento da japonesa Nissan, em 1999. Diante da situação de quase falência, ele adotou um receituário radical e temerário, em especial por se aplicar a uma economia fechada e corporativista como a japonesa.
O executivo acabou com a promoção por idade e antiguidade e de emprego vitalício, sistema entranhado na cultura japonesa, cortou 21 mil empregos (14% do total de funcionários) e levou uma equipe formada por americanos e europeus para ocupar cargos-chave. Também fechou cinco fábricas e desmontou a intocável estrutura de fornecedores. Considerada a medida mais ultrajante, tornou o inglês o idioma oficial da Nissan.
No segundo ano, estava ganha a aposta na qual ele arriscou o emprego, e a Nissan pôde apresentar balanço azul. Desde então, a indignação dos japoneses com o executivo se transformou em admiração e até endeusamento. Em 2002, a saga de Ghosn para tirar a Nissan do atoleiro foi relatada em um mangá, as típicas revistas de histórias em quadrinho com super heróis.
CARRO ELÉTRICO
A façanha habilitou o executivo a conquistar a presidência do consórcio Renault-Nissan e a partir para mais uma empreitada ambiciosa, e também considerada temerária pelo mercado: o desenvolvimento da primeira linha de carros elétricos fabricados em massa.
Como já tinha perdido a batalha do pioneirismo dos carros híbridos para o Prius da Toyota, resolveu entrar direto no mercado de mobilidade com zero emissão. Em 2007, por decisão de Ghosn, o consórcio investiu mais de US$ 5 bilhões para colocar o Nissan Leaf nas ruas americanas e japonesas três anos depois. “Começou uma nova etapa na história dos automóveis, silenciosa e respeitadora do meio ambiente”, ele se vangloriou na época.
Durante a crise mundial de 2008, o executivo tomou novamente medidas drásticas para blindar as empresas do furacão. Adotou o lema “nos recusamos a sacrificar o nosso futuro por problemas de hoje”. Deu certo.
Em outra demonstração de empenho, ganhou de vez a admiração dos japoneses ao comandar pessoalmente a recuperação das fábricas atingidas pela tragédia do tsunami e pela ameaça de contaminação da usina nuclear de Fukushima.
ESTILO IMPLACÁVEL
O estilo Ghosn de gestão tem merecido rasgados elogios em reportagens e livros. Entre suas qualidades, já foi descrito como de estilo direto e objetivo, prático e orientado para a execução e os resultados. Disciplinado, sempre delega funções à equipe.
Não se limita a reuniões de estratégias comerciais. Procura resolver problemas indo direto à origem, no interior das empresas, falando com empregados e fornecedores.
Em sua trajetória, até hoje, não se conhece algum fracasso. Em entrevistas, ele atribui os bons resultados à capacidade de errar e corrigir a tempo. Resolver problemas e corrigir os erros das equipes, segundo ele, é o escopo prioritário da alta gestão das empresas. “O gestor maduro não é aquele que não erra, mas o que sente e descobre o erro antes de todos.”
OLHOS DE ÁGUIA
No entanto, mesmo admirado, o estilo de gestão de Ghosn tem seu lado sombrio. Em várias ocasiões, foi questionado pelas reclamações de excesso de trabalho e de pressão. Duas crises simbolizam o estilo implacável do executivo - a onda de suicídios entre funcionários da Renault na França; e nos Estados Unidos, o recall causado por erros na produção, atribuídos à pressão excessiva por prazos.
Descrito como hiperativo e impaciente, cobra resultados rapidamente. Nas reuniões com o staff, criou uma rotina de apresentações de poucos minutos e cobrança dura em público. Nem vice-presidente é poupado. O executivo demonstra horror à complacência e à zona de conforto. Parece permanentemente tomado por um senso de urgência e de precaução contra crises.
Tem um cuidado especial com o sucesso, que considera uma fonte potencial de crise, pois “leva à complacência e às vezes à arrogância, tão comuns na indústria automobilística.”
Aos 61 anos, com seus olhos de águia, Carlos Ghosn parece manter a energia para continua a comandar um império. Entre erros e acertos, talvez sua lição mais importante para os líderes esteja nesta frase: “A vida de administrador é um eterno tentar, conferir os resultados e aprender. Gestão é uma forma de artesanato.”
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