Desigualdade perante a lei

No Brasil todos somos desiguais perante a lei. Alguns, inclusive, mais desiguais que outros. Somos desiguais perante a lei, pois a lei se retorce em sua negação de ser direito sem qualquer dever que o sustente

Jorge Maranhão
12/Nov/2019
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Desigualdade perante a lei

Com a desmoralização de nosso Supremo Jeitinho, temos mesmo de nos conformar com nossa desgraçada e fatal resistência barroquista.

Até que a compreendamos de fato não teremos como combatê-la. Pois no Brasil não nos coube a histórica e dialética experiência iluminista.

No Brasil todos somos desiguais perante a lei. Alguns, inclusive, mais desiguais que outros.

Triste Bahia, disse o barroco Gregório de Matos no século XVII. Triste Brasil, arremato eu de todo nosso barroquismo reticente em pleno século XXI.

Somos desiguais perante a lei, pois a lei se retorce em sua negação de ser direito sem qualquer dever que o sustente. Como o mais fajuto trompe l’oeil.

Assim é que a casa das leis as desossam de justiça e as torcem de tão abundantes que nenhum sentido mais possuem.

Assim é que a casa dos juízos, data vênia do maior deles, é desprovida dos mesmos, e nada mais fazem do que interpretar sentidos alheios às próprias leis, de sorte a agravar suas penas para julgados inimigos como a de atenuar as mesmas para julgados amigos.

Pois só nossa obsessão barroquista explica tamanhas torções e contorções, quase sempre distorções, que fazem desigualar os homens diante de tão desiguais leis.

O que se engendra de paradoxos, metáforas, ironias e hipérboles nossa compulsiva retórica, nosso apego ao ilusionismo, nosso escasso bom senso, nosso visceral descaso para com a prudência e o senso de proporção.

Vejam o caso da lei de abuso de autoridade que abusa da autoridade arbitrária dos legisladores que se julgam perseguidos pelos promotores e juízes que os condenam pelos seus crimes nefastos!

Nada como inverter o processo, distorcer o sentido das coisas, prever condenação aos juízes que os condenam, perseguir na persecução penal os mesmos promotores que os perseguem.

Vejam o caso do Supremo Jeitinho que iguala réus a promotores com tão amplo direito de defesa que nenhum dever mais resta de tão simplesmente cumprir suas sentenças condenatórias!

Tudo é farsa neste Supremo barroco que torce o ser das coisas em não-ser, como retorce o não-ser em ser!
Tudo por que essas primas donas do Supremo Jeitinho querem inventar teratológicas funções legisferantes.

Tomar a lei como letra morta quando não a usurpação da criação de uma nova lei pela exacerbação de sua insana interpretação!

E assim sucessiva e indefinidamente, em espiral barroquista infinda, para que tudo mude para ficar como sempre foi, para que nada mude para ficar como nunca foi, na nossa obsessão paralisante pelo paradoxo, onde tudo que é parece ser o que não é o que parece ser o que é o que não parece ser!

Pois o paradoxo é a espiral mais ornamentada de nossa resiliência barroquista!

O paradoxo é nosso caráter civilizatório! O entrave maior de nosso próprio processo civilizatório!

Ou a figura diabólica da construção em abismo, onde algo deixa de ser o que é de tanto se retorcer no seu sentido oposto. Quando se constrói algo no espaço da impossibilidade da construção. Ou a voluta de nos fazer percorrer o caminho de volta do próprio percurso indefinidamente.

O percalço que nos condena a não avançar. Quando o remédio é tanto que agrava a doença ao invés de combatê-la. Quando a hipérbole ou a obsessão pelo ornamento nos leva a perder de vista o assunto. Quando o mal se volta contra o feiticeiro.

Pois, quem vai legislar agora contra o abuso do legislador? Quem vai julgar o abuso do juiz? Quem vai denunciar o abuso do promotor? Pois, ao arbítrio do réu, o juiz que deveria julgá-lo acaba se tornando réu. Outra vez, uma lei abusiva contra o abuso da lei.

Quando já se disse que todos os abusos já existem no código penal atual e que quaisquer eventuais novas formas de abusos são sanáveis com o simples exercício do direito de recurso.

Quando na verdade se trata apenas de tentar burlar a lei penal para que não se aplique a pena. Para que a punição seja sempre impune. A farsa da punição. O castigo que não castiga. O juiz que não julga com medo de ser julgado.

E todos tenhamos a certeza de que a justiça jamais se cumpra! Nossa sina barroquista de avançar um passo à frente seguido de dois passos atrás, nos afastando cada vez mais da prudência, da razoabilidade, do bom senso e da justa medida.

Quando no Brasil nos livraremos da cilada barroquista e passaremos, enfim, ao Iluminismo? Onde o certo é o certo, o errado é o errado. O bandido, bandido e o mocinho, mocinho. O preto seja preto e o branco seja branco, preto no branco, até para que possa haver o cinza! Onde o pão seja o pão e o queijo seja o queijo?

Mas a praga barroquista de torcer, retorcer, contorcer e distorcer a realidade não é prerrogativa apenas pelo seu transbordamento nos campos da política, da justiça e da academia, quando se exacerba no campo da moral e dos maus costumes por toda a sociedade.

Quando políticos se aproveitam do estado, legislando em prol da sua corporação, empregando familiares, intermediando facilidades, virando as costas para seus eleitores.

Quando jornalistas e colunistas fazem palestras milionárias para corporações que vivem de verbas públicas.
Quando advogados cobram altos honorários de origens duvidosas de réus de organizações criminosas.

Quando o alto professorado acumula funções administrativas nas universidades públicas para engordar espertamente seus proventos.

Quando médicos usam matrículas de hospitais públicos como trampolim para clínica privada e passam a pagar residentes para lhes substituir nos plantões.

Quando ministros e desembargadores dão aulas e até empreendem instituições privadas de ensino jurídico conveniadas com o poder público.

Quando procuradores passam a advogar em bancas privadas agenciando conhecimento de legislações setoriais e ritos de tramitação processuais.

Quando militares assessoram e empreendem empresas de segurança privada contratadas pelo poder público.

Quando economistas assessoram e empreendem bancos de investimentos privados a partir de informações privilegiadas de políticas monetárias e tributárias.

Quando gestores públicos de empresas e autarquias estatais usam seus cargos como trampolim para a formação de clientela privada.

Quando o empresariado prestador de serviço possui em sua carteira de clientes apenas empresas estatais e entidades da administração pública.

Quando dirigentes pelegos de organizações sindicais empresariais e de trabalhadores boicotam medidas de saneamento da administração pública.

Todos mancomunados com os produtores de conteúdos da grande mídia enviesados pelo esquerdismo e da dissonância cognitiva onde seu mundo não é o mundo do senso comum dos cidadãos comuns do país.

E assumem o risco, não apenas de perder a metade de sua audiência, mas de dividir o país e promover seu impasse paralisante.

Ou fazem uma oposição dissimulada a governos de direita com obsessão e prova de um autoritarismo intrínseco à esquerda de não aceitar a alternância de poder com a direita.

Quando insistem no barroquismo mental de considerar brega a pauta conservadora como a farsa de trocar o substantivo pelo adjetivo, o assunto pelo ornamento, o conteúdo pela forma.

Revelando uma total incapacidade como progressistas de unir os cidadãos em torno de um projeto de país, para a busca de um consenso mínimo de crescimento, porque sua alegada luta contra os preconceitos conservadores é em si um preconceito.

Quando, enfim, os produtores de conteúdos da grande mídia viram as costas para o Brasil profundo, verdadeiro e conservador.

E se a teledramaturgia se arroga como a vanguarda dos costumes nacionais, quando se trata apenas dos costumes singulares de sua tribo de produtores, os jornalistas, mais narcísicos que o mito grego original, tomam a si próprios como assunto numa prova de que deixaram de reportar a realidade dos fatos para mostrar apenas seu delírio autista.

Uma vez que a imprensa tem o privilégio da proteção da fonte e pode distorcer à vontade as suas narrativas. Assim como os políticos têm a sagrada imunidade parlamentar! Os magistrados a sacrossanta convicção do indecifrável foro íntimo para sua hermenêutica de bolso.

Para que nós, pobres cidadãos comuns que lhes pagamos seus altos proventos, continuemos a ser eternamente tratados como desiguais perante a lei.

Jorge Maranhão, mestre em filosofia pela UFRJ, dirige o Instituto de Cultura de Cidadania A Voz do Cidadão e é autor de "Destorcer o Brasil. De sua cultura de torções, contorções e distorções barroquistas".

FOTO: Pixabay

*Jorge Maranhão é mestre em filosofia pela UFRJ, dirige o Instituto de Cultura de Cidadania A Voz do Cidadão e é autor de "Destorcer o Brasil. De sua cultura de torções, contorções e distorções barroquistas"

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