Cracolândia e liberdade de escolha
Como já se disse, toda vez que se sacrifica um pouco a liberdade para garantir a segurança ou a igualdade entre os homens, corre-se o risco de perder as duas
Em tempos de reincidente intervenção do Estado nas decisões do cidadão, nada como reler o professor de filosofia Denis Rosenfield num livrinho de 90 páginas lançado há alguns anos e intitulado "Liberdade de Escolha.
Pois foi com perplexidade que recebi a notícia desta semana sobre a ação da Prefeitura de São Paulo junto à comunidade da Cracolândia: contra a operação “limpeza” os adictos lançaram suas tralhas ferindo vários guardas municipais, enquanto um veículo da Projeto Redenção clamava para que comparecessem à unidade do CAPs (Centro de Atenção Psicossocial) para início do tratamento antidroga.
Veja aqui e atente para o ato falho do Estado babá que ao tomar conta do cidadão viciado, como se não fosse sua livre escolha se drogar, se arvora o poder divino da própria “redenção”.
É o tal caso. Se o próprio Deus sacrificou seu filho unigênito para redimir apenas os justos e crentes, o Estado autoritário brasileiro insiste em redimir até mesmo os viciados.
Pois é. Vivemos como se o Estado fosse mesmo um monumental CAPs. Uma vez que esta é a grande esquizofrenia de que padece toda a cultura brasileira: uma sociedade que, se um dia já foi de senhores e escravos, de reinóis e mozambos, puros e mestiços, hoje é de impunes e penitentes.
Impunes como uma minoria de cidadãos sanguessugas que tomam o Estado como objeto de pilhagem, vaca de infindas e abarrotadas tetas. Enquanto outros permanecem como uma maioria de desempregados, miseráveis e pagãos de fé e de impostos, para os quais o Estado é providência divina ante a qual só nos resta a penitência.
Logo na abertura do livrinho, o professor cita Santo Agostinho, na sua obra O livre arbítrio: “na ordem universal da Providência, o livre-arbítrio, mesmo tornando possível o pecado, é um bem do qual Deus deve ser louvado”.
Chego a pensar se não se trata de castigo divino o país ter se atolado no lamaçal da imoralidade pública, mais se afundando quanto mais se agita, pois ninguém assume responsabilidade por nada e todos jogam para escanteio seus deveres cívicos, no falso juízo de que somos todos titulares de direitos infinitos do Leviatã magnânimo.
“Se o social é responsável por tudo, o indivíduo é responsável por nada”, fulmina Rosenfield.
Sem livre-arbítrio, o cidadão vira servo dos poderosos arbitrários. Sem liberdade de escolha, o cidadão é tratado como irresponsável pelos governantes e agentes públicos, quando são as “condições sociais” que o levaram ao vício.
Não há lei porque simplesmente ninguém responde às sanções da lei, como se todos fossem inimputáveis crianças.
Quando a liberdade, como valor moral relativo à tradição humanista judaico-cristã, pode determinar a própria vida, como valor absoluto desta mesma tradição, juntamente com a propriedade e a honra aos contratos.
Quando o Estado intervencionista, se não totalitário quando se coloca na posição de autoridade religiosa, único sabedor do que seja o bem para a vida do cidadão, é autoritário mesmo quando não reconhece a liberdade de escolha do cidadão como seu maior bem e o trata como incapaz.
A liberdade de escolha é o maior bem do cidadão porque, graças a ela, é que o cidadão poderá pautar sua vida pela responsabilidade moral e se apropriar de seu destino.
Uma vez que não cabe definitivamente ao Estado cuidar da alma dos homens, assim como “ninguém pode ser forçado a receber um bem, seja da saúde ou da segurança de sua própria vida, contra a sua vontade.”
Apesar de satisfatório o exame que o autor fez do valor da liberdade, percorrendo desde Aristóteles e Santo Agostinho, passando por Hume, Locke e Freud, até o contemporâneo David Harsanyi, com seu "O Estado Babá", senti falta da menção do grande pensador inglês Isaiah Berlin, no seu definitivo ensaio "Dois conceitos de Liberdade".
No evento sobre as intenções de “limpeza” social da Cracolância, fica clara a oportunidade da advertência sobre as origens do Estado nazista feita pelo autor com base no livro "The Nazi War on Cancer", de Robert Proctor.
Sobretudo quando, para além da exclusão da liberdade de escolha e da apropriação da mente do cidadão, o Estado totalitário se apropria do seu próprio corpo, como demonstra o autor.
Ao contrário dos grandes líderes políticos da época, como os fumantes, alcoólicos e carnívoros Churchill, Roosevelt e Stálin, Hitler era antitabagista, abstêmio e vegetariano. Um verdadeiro politicamente correto, avant la lettre!
Para se ter bem a dimensão de que a origem do intervencionismo estatal está na supressão da liberdade de escolha do cidadão, o autor nos lembra que o Ministério da Propaganda nazista, era na verdade chamado de Ministério do Esclarecimento Popular e da Propaganda (Aufklärung und Propaganda, no original em alemão).
Os mesmos eufemismos que temos hoje quando substituímos os termos “limpeza” social por atenção e tratamento, ou “asilo e marginalização” por internação e exclusão social, ou mesmo “campos de extermínio” por de trabalhos forçados.
Como já se disse, toda vez que se sacrifica um pouco a liberdade para garantir a segurança ou a igualdade entre os homens, corre-se o risco de perder as duas.
Qualquer política de igualdade imposta por uma autoridade política para homens naturalmente desiguais, acabará no crescente sacrifício da liberdade, esta, sim, garantida por Deus como valor constitutivo da própria existência humana, que lhe possibilita, inclusive, escolher o melhor para sua vida, aqui compreendendo até mesmo a crença em Deus ou no bezerro de ouro.
Se a liberdade é um valor que reconfirma a natureza absoluta do valor da vida, a igualdade, ao contrário, se aproxima perigosamente de sua relativização ou precarização.
A igualdade de fins sociais e não a igualdade de meios, de tratamento perante a lei, esta sim a garantia da liberdade.
Daí a elucidação de um dos maiores dilemas políticos do mundo ocidental: o reconhecimento das diferenças culturais, enquanto liberdades individuais nas sociedades livres e multiculturais, não pode equivaler ao reconhecimento de comunidades que, dentro das mesmas, atentem contra o valor da própria vida, fundamento absoluto e contra o qual nenhuma conduta social pode ser tolerada.
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