Brasil deveria seguir exemplo de Roosevelt na questão das patentes das vacinas
Os países que apoiam a suspensão das patentes entenderam que, quanto mais tempo levar para se vacinar a população mundial, mais tempo vai durar a pandemia
Em uma decisão histórica, Estados Unidos e China manifestaram apoio às negociações em curso na Organização Mundial do Comércio (OMC) a uma proposta apoiada por mais de 63 países para a suspensão temporária das patentes das vacinas contra covid-19.
A reunião entre as duas principais potências mundiais aconteceu após Índia, África do Sul e outros co-proponentes apresentarem uma proposta revisada que buscava convencer os países da OMC que ainda estavam reticentes com a ideia a se engajarem nas negociações sobre alguns dispositivos do Acordo Trips, que regula internacionalmente a propriedade intelectual, inclusive das vacinas para covid-19.
A proposta atualizada prevê uma duração de três anos para a suspensão das patentes de vacinas, e se refere somente a elas, enquanto a proposta original levada à OMC por Índia e África do Sul estendia essa suspensão da propriedade intelectual por tempo indeterminado, e incluía produtos, tecnologia, materiais, componentes, métodos e meios de fabricação das vacinas.
Independentemente de ter sido “desidratada”, a proposta avançou.
Os EUA endossaram o início das negociações em que a OMC, até alguns meses atrás, escanteada por Washington, deverá ter papel importante para destravar o tema. A China estudará o assunto e a União Europeia apresentará sua proposta, que deve facilitar o uso de licenciamento compulsório tal como hoje existe. Índia e África do Sul, obviamente são a favor.
E o Brasil?
O Brasil, seguido por outros doze países, ainda tem dúvidas sobre a proposta e solicitou tempo adicional para se posicionar.
Você talvez se pergunte por que, no título desse artigo, afirmei que o Brasil deveria se inspirar em Franklin Delano Roosevelt, presidente dos Estados Unidos de 1933 a 1945, único na história daquele país a ser eleito por quatro mandatos consecutivos, e considerado um dos maiores estadistas do Século XX. A Resposta é: para agir de acordo com os melhores princípios, mas fazendo a correta leitura da realidade.
Todos os países que apoiam a suspensão das patentes das vacinas contra covid-19 entenderam que, quanto mais tempo levar para uma quantidade significativa da população mundial ser vacinada, mais tempo poderá durar essa pandemia, com todas as suas trágicas consequências humanas e econômicas.
Os governos desses países entenderam que enquanto houver um único país sequer em que a pandemia ainda esteja descontrolada, nesse lugar podem surgir novas variantes do coronavirus, mais letais ou mais contagiosas, e a partir dele, iniciar um novo ciclo de contaminação mundial, ainda mais devastador.
A única maneira de lidar com esse risco, de vencer a guerra contra o vírus, é utilizando toda a capacidade instalada mundial para se produzir vacinas. E a maneira mais rápida de se conseguir isso é através da suspensão das patentes.
A comparação com Roosevelt se faz porque, 80 anos atrás, em 1941, os Estados Unidos ainda não haviam entrado na Segunda Guerra Mundial, mas Roosevelt percebia o tamanho da ameaça que a Alemanha Nazista e o Japão Imperial representavam. E forneceu por empréstimo para o Reino Unido, França Livre, União Soviética e outros países aliados que enfrentavam o Eixo nos campos de batalha, armas e suprimentos, no programa que entrou para a história pelo nome de Lend-Lease.
As condições do Lend-Lease dificilmente poderiam ser consideradas “de mercado”, mas foi a maneira encontrada para se lidar com a ameaça existencial que se apresentava naquela época.
Saindo dos Estados Unidos de 1941 e voltando ao Brasil de 2021, em outra situação a preocupação do Brasil com a proteção do investimento privado e da propriedade intelectual seria digna de aplausos.
Característica das democracias mais avançadas, essa proteção é um marco civilizacional que garante a indivíduos, famílias e empresas a possibilidade de ter um mínimo de previsibilidade do futuro. E credenciaria o Brasil a receber os investimentos externos de que tanto precisamos.
Mas quando entendemos que pandemia é a ameaça existencial dos dias atuais, não somente à vida humana, mas às próprias empresas e economias que, em uma situação normal, se beneficiam enormemente da proteção à propriedade intelectual, esse se torna um princípio nobre e valioso, que deve ficar em segundo plano em prol de um bem maior.
E não custa lembrar que para o Brasil, essa é uma questão meramente retórica, porque não temos, até o momento, vacinas desenvolvidas por laboratórios brasileiros, cujos interesses seriam válido e correto o governo brasileiro defender em um contexto de realpolitik.
Por outro lado, os laboratórios que desenvolveram as vacinas disponíveis até o momento têm suas sedes, e suas fábricas, nos Estados Unidos, China, Índia e União Europeia, que estão se posicionando a favor da suspensão das patentes. Fica a observação, para reflexão.
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