Adriana Lira e suas pequenas joias feitas de açúcar
Para chegar aos formatos atuais, a doceira pesquisou técnicas e processos em livros antigos, como os da poetisa Cora Coralina, uma doceira de mão-cheia. As flores de coco (foto), do tamanho de um brigadeiro, são trabalhadas com fitas de coco, cozidas em polpa e água de fruta e são seu carro-chefe
Mais do que se auto intitular como doceira ou empresária, Adriana Lira se apresenta como pesquisadora de ingredientes da tradicional doçaria brasileira. Enquanto muitas confeiteiras investem tempo tentando incorporar doces, como Nutella, pasta americana e marshmallow em criações mais contemporâneas, Adriana rema contra a maré.
Criadora da marca Dona Doceira, com ateliê que leva o mesmo nome no Itaim Bibi, ela preserva receitas que são verdadeiras joias açucaradas e que vêm desaparecendo no tempo.
Doce de figo, flor de coco, compotas, baba de moça podem até parecer simples quitutes, mas representam, na verdade, um importante contexto histórico e cultural de nosso país.
Servidos em meio a saraus e grandes jantares comemorativos em bandejas de prata, muitos dos doces finos que vemos hoje em grandes comemorações populares eram um elemento de sociabilidade e peça importante no modelo de refinamento das famílias ricas na história de nosso país.
Aos doces também cabia um papel simbólico social. Era uma saudação mais profunda, uma homenagem, um prêmio, uma forma de se fazer amizade que se traduzia em bandejas de doces.
E diferente das atividades domésticas e da cozinha do dia a dia, que eram funções consideradas menores e relegadas às empregadas, o fazer dos doces fazia parte da boa formação das moças da sociedade, ao lado do bordado e do piano já no começo do século 1920.
Todos esses detalhes são enaltecidos e relembrados por Adriana quando conta como sua vida profissional se entrelaçou com o jeito mais tradicional possível de se vender um doce.
"A minha grande referência foi o caderno de receitas da minha avó. E também as receitas de Cora Coralina, que era uma cozinheira de mão-cheia", diz.
Adriana conheceu pessoalmente Cora, e oferece em sua loja receitas da doceira-poeta, como o doce de mamão verde e vermelho, bolo de araruta, figos recheados, Bolo Almirante, Bolo de nozes, doce de abóbora e a cocada em fita - o carro-chefe da marca e feita manualmente em formato de flor.
Guardiã de tantos processos manuais para finalizar esses doces, Adriana acredita que muitas receitas parecidas já até se perderam. A doceira recorda que algumas sequer foram escritas em papel, e passaram de geração em geração, como verdadeiros segredos de família, contados em conversas ao pé do fogão.
Nascida em Goiânia, Adriana passou a infância entre a capital e a Fazenda Santa Helena, da família, que hoje é a sede da produção das frutas orgânicas usadas no preparo dos doces que ela faz.
Ao relembrar sua criação entre muitas avós, bisavós e tias-avós com dotes de quituteiras, a empresária diz ter na memória o passo a passo de doces com muita delicadeza e longo tempo de preparo.
E é exatamente no modo de fazer os doces que Adriana estabeleceu a sua marca. Antes de se entregar profissionalmente ao mundo dos doces, Adriana trabalhou anos como executiva de comunicação. Foram décadas até que a paixão por doces falasse mais alto e a levasse para dentro de uma cozinha.
Decidida a resgatar as lembranças dos docinhos que consumia quando criança, passou a estudar livros de família e viajou para a Cidade de Goiás (Goiás Velho) para pesquisar a história desses doces e conhecer outras doceiras originais, como suas avós.
Nessa busca, percebeu que as receitas com maior complexidade nos preparos - que exigem tempo, paciência e braços - estavam sumindo, de fato.
“Geralmente se juntava toda a família para fazer um doce e cada um tinha uma função no preparo. São preparos trabalhosos que envolvem muitas etapas e incontáveis horas de pé na frente do fogão velando o tacho".
O doce de mamão verde em fitas, por exemplo, precisa ser cortado em fatias finas e depois enrolado e costurado um por um com agulha e linha, formando um cordão de caracóis. Depois desse processo, são 24 horas de molho em água que tem de ser trocada de tempos em tempos para que se perca todo o líquido ácido da fruta verde. Só depois disso, o doce vai para a panela.
A pamonha, que quando feita verdadeiramente com o milho verde seguindo a tradição mineira tem o processo de retirar os cabelos das espigas, depois ralar o milho, passar em uma peneira fina, temperar, tratar a folha da espiga para costurar um saquinho - algo que envolve muitas mãos e que Adriana levou para São Paulo em uma nova roupagem e, assim, um doce que a maioria vende por menos de R$ 10, em sua loja, sai por R$ 20.
Além dos doces individuais e muito escolhidos para festas, Adriana também serve em sua loja bolos de tabuleiro com receitas centenárias, como os de Araruta, Arroz e o Mané Pelado – de mandioca - tudo com muita história.
Reza a lenda, segundo Adriana, que o nome Mané Pelado era de um agricultor chamado Manoel que tinha uma plantação de mandioca e que fazia sua colheita pelado. Já o bolo de araruta é possível encontrar no livro de receitas de Cora Coralina, inclusive está no livro publicado por seu neto: Cora Coralina – Doceira e Poeta (2009).
Há oito anos em São Paulo, Adriana já trabalhava com encomendas em Goiânia desde 2010 e sustentava uma demanda de 8 mil docinhos por mês com frutas do Cerrado em algumas criações, como baru, pequi e araruta.
Abrir uma loja de rua na capital paulista não estava nos planos de Adriana para logo que chegasse. Mas a oportunidade apareceu. Adriana saiu de uma cozinha compartilhada com uma amiga para uma só sua. Grande demais para ser só uma cozinha, o lugar ganhou espaço para receber clientes.
“O mercado reagiu bem aqui em São Paulo, e acredito que a minha doceria se diferencia das outras justamente pelo aspecto histórico e cultural”.
IMAGENS: divulgação