'Vilanização' dos ultraprocessados é desafio da indústria alimentícia
O 'ativismo nutricional' tem pressionado o setor, segundo João Dornellas (primeiro à esq.), presidente da ABIA, que diz apostar em ciência e tecnologia para afastar discurso da comida de verdade x comida de mentira
De um lado, um setor que reúne 38 mil empresas, sendo 94% micro, pequenas e médias, que produz cerca de 270 milhões de toneladas de alimentos por ano, movimenta R$ 1 trilhão, processa 61% do que é produzido no campo, exporta para 190 países e gera 2 milhões de empregos com carteira assinada.
De outro, regras de rotulagem e classificações que mais confundem do que informam, e um processo de "vilanização", causada pelo "ativismo nutricional", que inclui pedidos de aumento de tributos, e pode dificultar mais o acesso da população com insegurança alimentar no país (estimada em 33 milhões).
Ainda que os números sejam positivos, esses são os principais desafios que a indústria de alimentos enfrenta hoje para desmistificar o discurso da "comida de verdade x comida de mentira", segundo João Dornellas, presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria de Alimentação (ABIA).
Ele falou sobre o tema em sua palestra "Perspectivas da Indústria Brasileira de Alimentos", apresentada nesta segunda-feira (18/03), na reunião do Conselho do Agronegócio da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), coordenado por Cesário Ramalho.
A indústria do setor, que abastece 73% do mercado interno, investiu R$ 36 milhões em inovação só em 2023 para garantir segurança, vida útil e "biodisponibilidade de nutrientes", segundo Dornellas.
Agora, após quase uma década de debate entre fabricantes, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e entidades como o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), no final de 2023 tornou-se obrigatória uma nova regra de rotulagem frontal para alimentos processados e ultraprocessados, que inclui as lupas de alerta para altos teores de açúcar adicionado, gordura saturada e sódio.
Essas informações colocadas em destaque têm assustado e confundido o consumidor, segundo Dornellas, que considerou a medida "injusta e irresponsável" com a população brasileira. Uma pesquisa da consultoria Bain & Company, divulgada em fevereiro último, revelou que, dos consumidores atentos às novas rotulagens (56% total), 46% desistiram de comprar produtos que trazem as lupas.
"Exportamos 27%, e ficamos em 2022 e 2023 com 24% de capacidade ociosa na indústria. Não falta alimento, falta renda. E informação", disse. "Já representamos 30% do PIB, hoje somos apenas 12%."
A nova cesta básica, seguindo as diretrizes da recém-aprovada reforma tributária, atualiza os itens com veto total aos ultraprocessados, com cinco ou mais ingredientes no rótulo, conservantes e aromatizantes artificiais, baseada no "Guia Alimentar para a População Brasileira", de 2009 e atualizado em 2014.
Foi quando o ativismo, ou "terrorismo nutricional", segundo Dornellas, começou a ganhar corpo, por associar problemas como obesidade e doenças crônicas ao consumo de alimentos industrializados.
O guia incluiu diretrizes como base da alimentação ideal alimentos in natura ou "minimamente processados"; óleos, gorduras, sal e açúcar em pequenas quantidades; limitação do consumo de alimentos processados e, como "regra de ouro", evitar o consumo de produtos ultraprocessados.
Segundo Dornellas, não há consenso científico sobre o guia, e "ninguém deu atenção no mundo inteiro" disse, citando análises de especialistas como Rodrigo Petrus, da USP. "Os consumidores precisam ser corretamente informados de que saudabilidade não tem correlação direta ou absoluta com o número de ingredientes, ou o fato de que o alimento foi processado em casa ou em uma grande indústria."
Ou Cecilia Nälsén, da Universidade de Örebro, na Suécia. "Ultraprocessado pode ser qualquer coisa, de pão integral à refeição pronta: existem muitos mal-entendidos entre alimentação e saúde, e a comunidade de pesquisa não deve contribuir para aumentar a confusão."
"O professor Tom Sanders (professor emérito de Nutrição e Dietética do King's College, de Londres) afirmou que 75% dos estudos que falam mal de alimentos ultraprocessados foram criados pelo mesmo grupo de cientistas que inventaram a classificação 'nova' no Brasil", destacou.
Citando ainda outras entidades científicas que não adotaram esse tipo de conduta por inconsistências, como a espanhola AESAN e a British Nutrition Foundation, do Reino Unido, ele reforçou que o processamento de alimentos existe há 2,5 milhões de anos, "desde que o homem descobriu o fogo."
"Ninguém consegue comer mandioca crua: descascar é um processo, cozinhar é outro processo... Uma fábrica de alimentos é como uma cozinha gigante: a diferença é o volume", disse. "E os processos aplicados são baseados em ciência e tecnologia para aumentar a segurança e a vida útil do alimento."
Ele lembrou que há ultraprocessados como fórmulas infantis, produto lácteo para crianças que precisam de complementação alimentar, com mais de 40 ingredientes na formulação estudados minuciosamente.
"Eles estão lá porque têm que estar. E salvam vidas. A humanidade se alimenta muito melhor hoje do que 50 anos atrás, e isso é resultado da evolução do processamento de alimentos, ciência e da tecnologia.”
Além dos investimentos em inovação do setor, o site "Tem comida, tem verdade", criado pela ABIA, em parceria com pesquisadores da Unicamp, é uma das iniciativas ao ativismo alimentar nas redes sociais, incentivado por famosos, celebridades e chefs, que indicam o que é ou não proibido.
Porque, segundo Dornellas, hoje parece "pecado" incluir mais etapas na industrialização, para inovar em novos produtos que se aproximem do que seria "ultraprocessado."
Ele exemplifica com uma cooperativa de fruticultores, que queira preparar uma geleia de frutas com conservantes para preservar a qualidade do produto durante sua vida útil e não causar danos à saúde da população. "Ele teria de classificar a geleia como ultraprocessada", disse. E entraria na lista negra.
TRIBUTAR MAIS RESOLVE?
Fora da nova cesta básica pela nova reforma tributária, os ultraprocessados se tornaram alvo de um manifesto assinado por ativistas alimentares de diversas áreas - da chef e apresentadora Rita Lobo ao ator Marcos Palmeira, do dr.Dráuzio Varella à Maria Emília Pacheco (ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) e Daniel Cady, nutricionista e marido de Ivete Sangalo.
Além da restrição de vendas, de publicidade e rotulagem de advertência, o grupo pediu taxação extra para os ultraprocessados na reforma tributária. A medida, segundo o presidente executivo da ABIA, não mudaria nada quanto às vendas ou à saúde. E citou o caso do México, tributado pelo IVA (imposto unificado).
Em 2014, houve pressão naquele país para aumentar os tributos das bebidas açucaradas de 17% para 28%. Assim foi feito, mas oito anos depois constatou-se que, se antes do aumento, 71% da população tinha sobrepeso. Em 2022, o número subiu para 75%, e não diminuiu o índice de doenças crônicas.
Mas a tributação continuou em 28%, encarecendo o consumo das famílias. "Na mesma linha, o Brasil já paga 37% nesses produtos, enquanto países da OCDE pagam 7%. Se resolvesse alguma coisa, seríamos um país sem sobrepeso. Por isso vamos brigar no Congresso até o fim da reforma tributária", completou Dornellas.
Roberto Mateus Ordine, presidente da ACSP, apoiou a iniciativa e colocou os especialistas da casa à disposição da ABIA. "Essa briga também é nossa: não fomos a favor da reforma, e continuamos na luta para melhorar sua regulamentação."
IMAGEM:Cesar Bruneli/ACSP