Temos imóveis vazios em excesso no Centro de São Paulo?
‘A análise adequada das políticas habitacionais precisa considerar a complexidade e a duração de sua implantação. Pretender que em apenas uma gestão de governo se inicie e se conclua um projeto habitacional é miopia’
O mantra de que em São Paulo temos mais imóveis vazios que o total do déficit habitacional, criado após a publicação dos dados do Censo de 2000, vem sendo reverberado desde então.
Algumas variações desse mantra evoluíram para registrar que essa disponibilidade de imóveis era totalmente localizada no Centro da cidade, o que não condiz com a realidade.
Embora esse discurso possa ser um caminho fácil para a geração de polêmica e crítica política, ele carrega uma grande quantidade de desinformação.
Em primeiro lugar, imóvel vazio não é sinônimo de imóvel disponível para ocupação residencial. Boa parte depende de regularizações edilícias para atender às normas de segurança, prevenção de incêndio, acessibilidade e fundiária.
Em segundo lugar, nas análises urbanísticas deve se levar em conta que sempre teremos uma vacância de equilíbrio, pois, as pessoas se casam, morrem, se mudam para o asilo, ou para habitações maiores ou menores, ou para outras regiões, reformam suas casas etc. e, nesse momento os imóveis ficam vazios algum tempo.
Além disso, precisamos considerar o prazo necessário para a absorção pelos compradores das unidades novas produzidas pelo setor produtivo privado. Nos últimos anos, tem sido lançadas 80 mil novas habitações no município de São Paulo, mais da metade no segmento econômico.
Mesmo assim, de acordo com os últimos Censos, apenas 9% dos imóveis vagos se localizam nos Distritos Centrais. Assim, utilizar de forma demagógica esse parâmetro é errado.
Em 2009, a Cohab contratou a FUPAM, ligada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP para fazer o levantamento de todos os edifícios vazios no Centro de São Paulo, uma complexa e trabalhosa pesquisa para se obter confirmações confiáveis.
Ao final do trabalho, a Cohab publicou um Decreto de Interesse Social em 53 edifícios, a maioria prédios comerciais e hotéis, para serem desapropriados e “retrofitados” nos anos subsequentes.
Os estudos técnicos de viabilidade concluíram que a somatória de todos os edifícios resultaria em 2500 unidades, predominantemente estúdios e um dormitório. Muito longe das centenas de milhares de unidades levianamente anunciadas pelos críticos oportunistas.
AS DÍVIDAS DE IPTU SUPERAM O VALOR DOS IMÓVEIS VAZIOS NO CENTRO DE SÃO PAULO?
Dentre as variações do mantra, uma dizia que esses imóveis vazios do centro tinham atrasos nos pagamentos IPTU superiores ao próprio valor do bem e que à Prefeitura bastava se “apropriar” desses imóveis, sem ter que desapropriá-los na forma da Lei. A fim de buscar todos os recursos disponíveis para a desapropriação desses prédios, a Cohab e a Prefeitura de São Paulo avaliaram os débitos de IPTU dos edifícios pesquisados. Apenas um, conhecido por Prestes Maia, que estava ocupado por um movimento de moradia há alguns anos, tinha um débito de IPTU relevante, comparável ao valor de avaliação. Todos os demais não tinham dívidas significativas de IPTU, diferentemente de algumas versões do mantra.
A IMPORTÂNCIA DAS POLÍTICAS DE ESTADO
A análise adequada das políticas habitacionais precisa considerar a complexidade e a duração de sua implantação. Pretender que em apenas uma gestão de governo se inicie e se conclua um projeto habitacional é miopia: a produção de uma habitação leva pelo menos quatro anos, ou seja, nenhuma ação iniciada no segundo ano do mandato de um governante será concluída na própria gestão e assim sucessivamente.
Por isso, os analistas precisam olhar sob a política de continuidade dos programas, sem meramente avaliarem as quantidades concluídas num determinado período. Também não adianta querer utilizar o termo “viabilização”, porque nada é viabilizado até que a habitação tenha sido concluída legalmente, fisicamente e financeiramente.
O programa RENOVA CENTRO foi reconhecido internacionalmente por pesquisadores, por renomadas universidades em diversos Congressos sobre o tema (Cambridge, LSE, Kings College, Columbia, NYU, Universidade do Chile, Universidade de Buenos Aires), além de agências internacionais de desenvolvimento social sustentável, como a ONU. Em 2010, iniciaram-se os primeiros desenvolvimentos dos projetos de recuperação de edifícios.
Infelizmente, foi interrompido na mudança de governo municipal subsequente, que permitiu uma sucessão enorme de ocupações desses edifícios selecionados e já sendo trabalhados pela Cohab. Por conta dessas ações, sem o devido planejamento e respeito à segurança física e legal das reformas, a cidade assistiu inclusive algumas tragédias de incêndios e ruínas de prédios.
SOLUÇO E CONTINUIDADE
Anos depois, algumas ações importantes foram retomadas, somando-se a novas iniciativas, que valem destaque:
O governo do Estado concluiu algumas PPPs de habitação, trazendo novos moradores para a área Central. A Prefeitura e a Câmara dos Vereadores criaram novos incentivos legais, como o AIU CENTRAL (área de intervenção urbana do setor central), notificando milhares de proprietários de imóveis que não cumprem a Função Social (estão vazios), e já tendo encaminhado a desapropriação de cinco edifícios, que serão transformados em Habitação de Interesse Social.
Mas a recuperação da área central com inclusão social também precisa de mistura de famílias com diferentes rendas. O REQUALIFICA CENTRO, arcabouço de legislação com incentivos econômicos e processos de desburocratização está atraindo efetivamente agentes privados: em julho/24 já temos 16 projetos de retrofit aprovados, produzindo 1564 unidades residenciais.
O REQUALIFICA COMERCIAL também foi criado para trazer de volta os empregos que foram extintos pela degradação da área central e já tem dois prédios aprovados para esta finalidade.
Outras ações de estímulo, como a criação de subsídio para a revitalização, já contam com um aporte de R$ 100 milhões e já receberam a inscrição de 21 projetos, três deles já aprovados.
A QUESTÃO DA SUSTENTABILIDADE ECONÔMICA
A reciclagem de imóveis em regiões de infraestrutura é desejável, mas não é fácil de viabilizar.
Simplificadamente, no processo de retrofit além do aproveitamento do terreno e do potencial construtivo, representando de 10 a 20% do custo total, as fundações e a estrutura podem ser mais ou menos aproveitadas, representando aproximadamente mais de 25% do custo de obra. Entre outros materiais, deverão ser substituídas vedações (paredes), revestimentos, pisos, caixilhos e gradis, instalações elétricas e hidráulicas, elevadores, portas, pintura, fachadas, impermeabilizações e, estes itens equivalentes a 75% do custo da obra poderão custar proporcionalmente ainda mais que numa obra nova.
Um edifício antigo, histórico, tem seu charme, mas poderá não oferecer os mesmos equipamentos ou layout de um projeto greenfield (novo) que foi projetado para atender as preferências do público atual e das normas técnicas que mudaram significativamente desde a construção original. Consequentemente o preço final terá um deságio.
Portanto, é muito importante a qualidade do tecido urbano, mensurada pelo valor do terreno/localização para a viabilidade do projeto. Ao mesmo tempo, a ocupação residencial das áreas centrais valoriza os investimentos públicos feitos ao longo de décadas nesses locais.
Assim, o “retrofit” desses prédios do Centro é muito desejável, mas não será tarefa simples nem barata, como o discurso precipitado dos críticos faz parecer.
PRESENTE E FUTURO
Assim, temos que valorizar e não criticar todos os esforços de todos os atores, públicos e privados.
O “Prestes Maia”, após tantos anos de conflito e desafios, foi desapropriado e reformado pela Prefeitura, resultando em 287 moradias, pelo programa PODE ENTRAR da PMSP. Foi difícil, doloroso para muita gente envolvida, custoso para os pagadores de impostos e ainda depende de uma gestão competente para não ser degradado novamente, pois a gestão condominial ainda é um desafio nos projetos de HIS (Habitação de Interesse Social).
Com esse exemplo e outros já implantados, podemos visualizar meios e recursos necessários, começando por um planejamento de longo prazo, de forma pragmática e não com um discurso populista.
Visando o desejável repovoamento da área central, muitas ações na melhoria das condições urbanas, com destaque para as medidas que promovem segurança, já estão estimulando a aprovação de novos projetos de edifícios privados, num total de 38 mil unidades desde 2021.
Essas iniciativas podem e devem ser aperfeiçoadas, mas é imprescindível que as propostas dos candidatos que pretendem assumir a gestão da maior cidade do país contemplem a continuidade e não joguem fora as iniciativas em curso.
*Ângela Luppi Barbon é arquiteta e urbanista. Foi Diretora Social e Comercial da Cohab-SP
*Ricardo Pereira Leite é engenheiro civil. Foi Secretário Municipal da Habitação de São Paulo
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IMAGEM: Paulo Pampolin/DC