Reforma tributária: um diálogo equivocado
Fazer uma reforma constitucional da tributação do consumo é diferente de se discutir reforma tributária
Ao analisar o que os contribuintes esperam da reforma tributária, e comparar com a PEC 45, parece que são coisas diferentes, que a Emenda Constitucional proposta é de um “novo sistema tributário”, do consumo, que nada tem a ver com as expectativas das empresas e dos consumidores.
Esse “novo sistema”, elaborado por um grupo de técnicos competentes, reflete suas ideias e posições. Apresentado com o título de reforma tributária, contando com um marketing eficiente, e com apoiadores importantes, passou a ser considerada como a esperada reformulação do sistema tributário, e debatida por todos: especialistas, jornalistas, entidades, autoridades e parlamentares.
O engano começa na sua apresentação, que fala da “simplificação do sistema tributário nacional pela unificação dos tributos sobre o consumo”, o que não corresponde ao seu texto. Se a PEC tivesse realmente esse objetivo, caberia apenas analisar se a proposta atende às aspirações dos contribuintes. Essa, no entanto, não é a realidade, pois ela avança em outros objetivos muito mais complexos. Ela cria dois novos impostos de consumo, a partir da transformação das contribuições sociais e da mudança na natureza e na sistemática do IPI.
As contribuições do PIS/COFINS são transformadas em imposto de consumo, com alteração da natureza desses tributos, o que exige alteração constitucional, uma vez que a tributação do consumo atualmente é reservada para os estados e municípios.
Qual é o objetivo dessa mudança constitucional, se o PIS/COFINS, que incide sobre receita bruta, poderia ser agregado ao imposto de renda, ou simplificado, se fosse o caso, na própria esfera federal, sem mudar sua natureza, mesmo que mudasse a sistemática como foi proposto no passado. A hipótese provável é que se pretende transferir parte de sua tributação para os serviços, embutindo as contribuições no IBS.
A ideia de que os serviços pagam pouco imposto e podem ser onerados, não leva em conta o peso dos encargos sobre a folha de pagamentos, que, segundo dados da Receita, é maior do que o IR.
Mais injustificável parece ser a inclusão do IPI, um imposto de natureza “extrafiscal”, que visa objetivos de estimular ou desestimular produtos em função da essencialidade ou de sua natureza. Atualmente, suas alíquotas podem ser modificadas por decreto, como instrumento de política econômica, característica que perderá ao ser incorporado ao IBS. Esse imposto poderia ser mantido na área federal e, eventualmente, incorporado ao “imposto seletivo”, com os mesmos objetivos atuais.
O que explica essa mudança na natureza de um imposto típico do setor industrial que o faria passar a incidir de forma indireta em atividades como educação, saúde, lazer e muitas outras?
Quem será beneficiado com essa mudança? O contribuinte não é. Qual será o maior perdedor? Os Serviços.
Os produtos que têm alíquotas superiores à média desse tributo serão beneficiados, embora alguns possam vir a ser tributado pelo imposto seletivo sobre o vício. Ocorre que os produtos que têm as maiores alíquotas do IPI são aqueles considerados supérfluos, ou que se deseja desestimular o consumo, e serão os maiores beneficiados com sua inclusão no IBS, contrariando a função “extrafiscal” do IPI.
Essas observações mostram que a PEC 45 propõe um novo sistema tributário do consumo, e não a reforma tributária para simplificar os impostos atuais.
Perdeu-se de vista o objetivo de se discutir os problemas do sistema tributário vigente, e as possíveis correções. Todos os debates partem do “novo sistema tributário” e como encaixar a realidade na proposta, e nos seus objetivos, que não são os que os contribuintes esperam há muitos anos. Ao invés de uma solução, os contribuintes do setor Serviços passarão a enfrentar uma burocracia complexa e aumento significativo da tributação.
A discussão que há anos se faz sobre as distorções existentes no ICMS, agravadas agora por diversas decisões do STF, indica a urgente necessidade de, a partir do diagnóstico, procurar as soluções. Esse me parece ser o primeiro passo para fazer a reforma tributária do ponto de vista dos contribuintes.
Fazer uma reforma constitucional da tributação do consumo é diferente de se discutir reforma tributária. É preciso discutir as premissas, os objetivos e os mecanismos propostos na PEC, e as implicações das mudanças para uma economia que, apesar das dificuldades, cresceu 3% em 2022, mas que enfrenta no momento incertezas políticas, econômicas e sociais.
Antes de se discutir o “como” é preciso discutir o “porquê”. Não se pode mudar o texto constitucional sem uma explicação clara das razões para as transformações do Pis\Cofins e do IPI em impostos de consumo.
Aceitas essas mudanças, pode-se discutir os objetivos visados. Segundo a exposição de motivos são: simplificação, equidade, neutralidade e transparência.
Os princípios: um único imposto de consumo, alíquota única, administração compartilhada, autonomia para fixar alíquotas para os três entes federativos.
A narrativa do secretário Bernard Appy é a de que “a reforma tributária (PEC 45) tem potencial de elevar o PIB em, no mínimo, 10%, ao eliminar a cumulatividade de impostos”. Com isso, não haveria perdedores.
Analisando a proposta a partir da expectativa transmitida pelo secretário, de elevar o PIB, ao eliminar a cumulatividade de impostos, surge uma grande dúvida. O fim da cumulatividade do imposto, pela proposta, só vai ocorrer ao fim do período de transição de dez anos.
Sendo assim, o crescimento começará a ocorrer depois de dez anos da aprovação da proposta. O que acontecerá com a economia durante a transição, na qual continuam os impostos cumulativos, mais o novo, além do problema da complexidade do ICMS não resolvida?
Essa é uma questão importante que precisa ser discutida. Se a eliminação da cumulatividade vai promover o crescimento, sua continuidade, acrescida do novo imposto, deve resultar em desaceleração da economia no curto e médio prazo. Depois, se poderia ter a expectativa de taxas “chinesas” de crescimento no futuro.
A ideia da alíquota única parte do princípio de que bens e serviços devem ser igualmente tributados, cabendo ao consumidor escolher o que quer consumir. Por trás desse raciocínio, no entanto, está a visão de que rico consome serviços e pobre consome produtos, uma dicotomia que não corresponde à realidade. Existe uma enorme faixa da população que se encontra entre o rico e o pobre, e consome tanto bens, como serviços.
É a classe média, que é fator de equilíbrio econômico e social, que tem sido ignorada nas discussões e que tem uma parcela significativa de pessoas que dependem dos serviços privados, pela insuficiência da assistência pública e, o mais importante, dos empregos oferecidos por esse setor.
O impacto inflacionário do aumento significativo de diversos segmentos dos Serviços se espalhará por toda economia devido à correção monetária formal e informal da economia. A devolução de uma parcela do imposto para as camadas de menor renda para alguns produtos, além de complexa, se considerarmos que cerca de 80% do comércio é de pequeno porte e que nas regiões mais distantes a informalidade é grande, não compensará os mais pobres dos efeitos dos aumentos dos preços em geral.
A conclusão que se pode tirar das observações apresentadas é que é um grande risco promover uma mudança estrutural do sistema tributário pela via constitucional sem que tenha condições de avaliar o impacto das mudanças sobre as empresas, os empregos e a economia. Qualquer desequilíbrio que possa ocorrer, especialmente na geração de empregos, não poderá ser corrigido sem uma nova emenda do texto constitucional.