Quanto custa ter fé?

Pagar para estudar, passear, se vestir, viajar, comer e para...rezar!

Ivone Zeger
06/Dez/2024
Advogada, consultora jurídica, palestrante e escritora.
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Quanto custa ter fé?

Há quem sente num banco de praça e reze, outros meditam na praia. Pode-se também orar em casa, com a família reunida; ou sozinho, no silêncio do quarto. E quem nunca precisou do silêncio das igrejas e templos, para um momento de reflexão ou descanso da mente, que jogue a primeira pedra.

E, claro, há os que vão ouvir “a palavra de Deus”. A voz humana é tão poderosa que, para muitos, ouvi-la já é uma benção. Nem sempre é apenas o sentido das palavras o que vale, mas o fato de alguém estar ali, de maneira despojada, doando seus minutos para levar um pouco de conforto espiritual a seu semelhante.

Quem procura igrejas e templos, normalmente, quer cuidar da alma, do espírito. Quer saúde mental, um pouco de tranquilidade, ou buscar forças para enfrentar esse mundo cada vez mais conturbado, e que gira em torno do quanto se tem e do quanto se pode gastar. Daí ser até natural que, ao se dirigir a uma “casa de Deus”, o cidadão não queira discutir assuntos financeiros. Óbvio, não?

Pois foi recentemente que um fiel, inconformado com o pedido abusivo do dízimo, recorreu à justiça buscando indenização. No pedido, o fiel dizia que “a coação acontecia quando os pastores do lugar afirmavam que coisas ruins lhe aconteceriam caso não pagasse regularmente o dízimo”. Ele contou também que “como não conseguia arcar com a contribuição, era humilhado perante outras pessoas”. Diante do constrangimento e da pressão sofrida, o fiel resolveu recorrer à justiça pleiteando indenização por danos morais.

Vale lembrar que dinheiro não vem do céu, e que as contas mensais chegam pela porta adentro. Crises financeiras, por exemplo, têm sido apontadas como vilãs contra a estabilidade das famílias. Além disso, a sociedade baseada no consumo e na grande oferta de crédito, como empréstimos pessoais, limites no cheque e cartões de crédito, acabam por gerar descontrole financeiro e, não raro, desespero. Para pais e mães separados, as dificuldades podem aumentar ainda mais, pois estão sozinhos para manter a casa, ou para recomeçar a vida e ao mesmo tempo arcar com pensão alimentícia. Basicamente, como já foi dito, a sociedade gira em torno do dinheiro e este, especialmente quando falta, gera infelicidade. Há motivos de sobra, portanto, para uma busca por espiritualidade, seja na ilusão de se resolver os problemas, seja como lenitivo e força para continuar na batalha. Nesse contexto, ter de pagar para rezar gera uma sensação de, no mínimo, frustração.

Mas não foi exatamente essa a percepção dos juízes da 3ª Câmara de Direito Privado, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que negou ao fiel o pedido de indenização. Para os magistrados, não se pode considerar como vítima alguém que optou por fazer parte de determinada igreja. Já que a escolha de religião ou qual igreja frequentar é livre, então, em tese, não há como acusar a igreja de “coação ou pressão psicológica indevida”. Os magistrados também alegaram que “aceitar a tese de que a exigência do pagamento de dízimo, sob pena de sofrer consequências horríveis, configuraria ato ilícito, estar-se-ia admitindo a interferência estatal no conteúdo de dogmas e postulados de determinada instituição religiosa, o que não apenas é um absurdo, como também, consiste em grave violação ao direito constitucional fundamental à liberdade de crença”.

Interessante, não? De um lado, temos um fiel que justamente tem sua liberdade tolhida, ao não poder professar sua fé. Afinal, ao não arcar com as despesas financeiras requeridas, é coagido e humilhado no lugar em que deveria ser acolhido. Argumento igual, “a liberdade de crença”, é utilizado para negar seu pedido.

É verdade que o Estado, sendo laico, portanto desvinculado de qualquer religião, não deve interferir na liberdade religiosa. Entre outros aspectos, isso significa principalmente não determinar por meio de lei ou decreto a prática de uma religião específica, ou ainda, significa que o Estado não pode proibir uma religião de ser professada. Embora não haja lei para coibir abusos relativos a dízimos, também não há lei que proíba a interferência quando estes mesmos abusos acontecem.

Já o argumento de interferência em um “dogma”, embora parecendo correto, deixa a dúvida: a cobrança de dízimo é um dogma? Normalmente, o dízimo é requerido para a manutenção do templo ou da igreja, ou para salários dos que os mantêm abertos e em funcionamento. E, também é usual ocorrer o exercício da fraternidade, ou seja, quem tem mais recursos ajuda mais; os desprovidos de recursos materiais ajudam menos ou não colaboram nesse item. Há, inclusive, muitas pessoas que, na impossibilidade de ajudar financeiramente, prestam serviços dos mais variados aos templos, voluntariamente.

Ora, justamente para facilitar que as portas estejam sempre abertas é que igrejas e templos têm o privilégio da isenção fiscal. Na Constituição Federal, o artigo 150, em seu inciso VI, alínea b determina que: “sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre templos de qualquer culto”. E não é só em relação aos imóveis. Em 2002, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou também que as entidades religiosas têm direito à imunidade tributária sobre qualquer patrimônio, renda ou serviço relacionado, de forma direta, à sua atividade essencial, mesmo que aluguem seus imóveis ou os mantenham desocupados.

Ou seja, consideradas sem fins lucrativos, entidades religiosas podem requisitar “imunidade tributária” junto aos poderes municipal, estadual ou federal, e se desincumbirem de pagar impostos como: IPTU (Imposto Predial Territorial Urbano), ITBI (Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis), ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços), IPVA (Imposto sobre Propriedade de Veículo Automotor), IPI (Imposto sobre Produto Industrializado), IRRF (Imposto de Renda Retido na Fonte) e ISS (Imposto sobre Serviços) e outros impostos que porventura sejam criados.

Portanto, o Estado não só provê a liberdade religiosa, como convém a uma democracia, como igualmente facilita o acesso dos cidadãos a seus templos, igrejas e congregações. Não é de se estranhar que um fiel não possa rezar em paz?

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IMAGEM: Freepik

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