Primeiro, não prejudicar

A percepção de uma carga tributária desproporcionalmente elevada, quando cotejada com a má qualidade do gasto público, a excessiva litigiosidade, a insegurança jurídica e as exorbitantes exigências burocráticas geram um compreensível clamor por reforma tributária

Everardo Maciel
05/Set/2019
Ex-secretário da Receita Federal, é consultor jurídico e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público
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Primeiro, não prejudicar

Inspirado em Hipócrates (460 AC – 377 AC), Thomas Sydenham (1624 – 1689), um dos fundadores da bioética, ensinava aos médicos: primeiro, não prejudicar (primum non nocere), em referência à indispensável prevenção de riscos elevados, custos desnecessários e danos irredimíveis para os pacientes.

É com essa perspectiva e por imperativo de consciência que critico a PEC 45, autodesignada reforma tributária, pois são muitas suas vítimas potenciais.

A percepção de uma carga tributária desproporcionalmente elevada, quando cotejada com a má qualidade do gasto público, a excessiva litigiosidade, a insegurança jurídica e as exorbitantes exigências burocráticas geram um compreensível clamor por reforma tributária e uma ladainha autodifamatória, sem que sejam adequadamente debatidos os problemas.

Nessas circunstâncias prosperam teses que tentam reproduzir enlatados tributários, não raro com validade vencida, e “teorias” para encobrir agendas ocultas.

A principal característica da PEC 45 é uma desproporcional redistribuição de carga tributária entre os contribuintes, com ganhadores e perdedores.

Como tenho dito, o maior beneficiário são as instituições financeiras que seriam desoneradas da vigente tributação do PIS/Cofins.

O mais grave dessa desoneração é que ela ocorre às expensas de um brutal aumento de tributação para a imensa maioria dos contribuintes que seriam alcançados pela PEC, em total desalinho com reiteradas proclamações de que nenhum aumento de tributação passaria pelo Congresso Nacional.

Por que não levar ao conhecimento dos parlamentares e da sociedade as repercussões setoriais da proposta, justamente quando se brada o princípio da transparência? Nada resistiria a um exame minucioso de consequências.
Em artigos anteriores, alinhei vítimas potenciais de aumento tributário, em virtude da PEC 45: prestadores de serviços (médicos, advogados, engenheiros, etc.), pequenos comerciantes e industriais, setor agropecuário, etc.

Vou detalhar um caso. As incorporações imobiliárias objeto de patrimônio de afetação, que hoje recolhem o PIS/Cofins com alíquota de 2,08% incidentes sobre a receita bruta, passariam a ser oneradas com uma alíquota de 25% ou 30%, a depender da estimativa, e com baixa possibilidade de aproveitamento de créditos; já as unidades habitacionais construídas no âmbito do programa “Minha Casa, Minha Vida” teriam aumento de 0,53% para 25% ou 30%.

Desnecessário salientar o impacto no volume de negócios e nas prestações da casa própria, tanto quanto nas mensalidades escolares e nas consultas médicas.

Outra característica da PEC 45 é a propensão à concentração econômica, em nome da eliminação de “distorções”, que teimam negar evidências de enormes desigualdades regionais de renda, cuja correção é objetivo repetidamente consagrado no texto constitucional.

A Zona Franca de Manaus é uma vítima preferencial da PEC 45, apesar dos seus mais de 86 mil trabalhadores.
A preservação da Amazônia está no centro dos debates internacionais sobre mudanças climáticas. Como estariam suas florestas sem um polo de geração de empregos urbanos?

Os problemas existentes na Zona Franca de Manaus devem ser resolvidos com base em uma discussão responsável. Extingui-la é promover abertamente o desmatamento e inundar de migrantes as periferias dos grandes centros urbanos.

O ideário concentracionista pretende, também, vincular a dotações orçamentárias a concessão de incentivos nas regiões mais pobres. Essa pretensão é apenas uma forma de vedar a concessão, pela incompatibilidade entre vigência anual dos orçamentos e prazo de investimentos.

Essas preocupações não autorizam, contudo, concluir que perfilho o imobilismo. Os mais relevantes problemas tributários do Brasil são, em verdade, o excesso de litigiosidade, a insegurança jurídica e o burocratismo, que nada têm a ver com a natureza dos tributos. Dizem respeito ao processo e aos procedimentos, cuja densidade técnica, entretanto, não os habilita à passarela de alegorias tributárias.

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