Por que o Brasil pode garantir o futuro do carro elétrico?
Entenda como a rede de distribuição de etanol já implantada no país tem condições de alavancar a eletrificação dos automóveis. Nesta terça-feira, a Nissan apresenta em São Paulo um protótipo que mostra como vai funcionar o novo sistema
O aperfeiçoamento da tecnologia da célula de combustível, usada em carros com motores elétricos, tem potencial para colocar o Brasil na vanguarda da indústria automobilística.
Curiosamente, foi o investimento feito pelo país na ampliação da cadeia de distribuição do etanol que pode ter traçado a rota mais segura para a eletrificação do automóvel.
A verdade é que, atirando no que vimos, acertamos o que não vimos. Para saber como isso aconteceu, é necessário entender quais as apostas das montadoras para substituir os motores a combustão. Há investimentos em várias frentes.
O carro puramente elétrico, como os modelos da Tesla ou o Leaf, da Nissan, depende de baterias que são recarregadas ao serem ligadas diretamente a uma fonte de energia – assim como você faz com seu celular.
Conceitualmente mais prática, essa abordagem ainda esbarra no elevado tempo de recarga (são oito horas para uma carga completa no Leaf) e na vida útil das baterias, de oito anos.
Além disso, excetuando algumas experiências urbanas nos Estados Unidos e Europa, hoje não há uma rede de abastecimento que permita a esses modelos percorrerem grandes distâncias.
Paralelamente, as montadoras desenvolvem a chamada célula a combustível de hidrogênio. Nesse caso, não é preciso ligar o carro a uma fonte de energia para abastecer as baterias que farão o motor elétrico funcionar.
É o hidrogênio, armazenado em tanques no próprio carro, que por meio de um processo químico produzirá a eletricidade necessária.
O Honda Clarity e o Mirai, da Toyota, ambos colocados em linha no Japão, funcionam com essa tecnologia. Nesse caso, há sempre o risco de se lidar com um gás extremamente inflamável.
Estocá-lo exige o uso de tanques de titânio, bastante caros. Não existem muitos locais pelo mundo qualificados para fornecer o gás de maneira segura aos motoristas.
Mas a célula a combustível não precisa funcionar diretamente com hidrogênio. Pode ser abastecida por combustível líquido. Essa é uma terceira linha de pesquisa -justamente aquela que pode colocar o Brasil na rota do desenvolvimento do carro elétrico.
Nesse caso, o veículo é abastecido com um combustível líquido qualquer, do qual será extraído o hidrogênio em um processo chamado reforma. Esse processo de extração do gás acontece a bordo do veículo, o que dispensa o uso de tanques de hidrogênio.
Como o etanol possui o maior percentual de hidrogênio em suas moléculas comparado a outros combustíveis de uso convencional, como a gasolina, ele passou a ser a vedete nos testes da célula a combustível.
Não por acaso a nipônica Nissan escolheu o Brasil para experimentar o protótipo SOFC, o primeiro carro a usar essa tecnologia de maneira bem-sucedida.
Foi preciso que engenheiros japoneses viessem ao Brasil para nos alertar que, mesmo sem saber, criamos a infraestrutura necessária para garantir o futuro do carro elétrico.
Cada um dos 43 mil postos de combustível espalhados pelo país é um reservatório de hidrogênio em potencial, sem os riscos e custos inerentes à armazenagem desse gás.
Pelo menos no Brasil, o problema do reabastecimento dos carros com motores elétricos estaria resolvido.
A META É 2020
Segundo Ricardo Abe, gerente de engenharia da Nissan, com 30 litros de etanol – a capacidade do tanque do protótipo SOFC - é possível rodar 600 quilômetros. Por se tratar de um carro elétrico, ele é silencioso. A desvantagem é que, diferentemente das outras tecnologias, a célula a combustível movida a etanol não é 100% limpa.
Um dos subprodutos decorrentes da extração do hidrogênio do etanol é o gás carbônico, que acaba eliminado pelo escape do veículo.
Abe afirma que a emissão é mínima. “O gás carbônico emitido é capturado no ciclo da cana, que reabsorve o gás para se desenvolver”, diz o engenheiro.
O protótipo usado pela Nissan para testar a tecnologia é basicamente o Leaf, o modelo elétrico mais vendido no mundo. O motor é o mesmo, assim como as baterias. A diferença é que o veículo de teste vem adaptado com o sistema SOFC, que permite o abastecimento com etanol.
De acordo com Abe, os testes mostraram que a célula a combustível movida a etanol permite um custo de R$ 0,10 por quilômetro rodado, quase o mesmo do Leaf (R$ 0,09 por quilômetro).
Já os modelos semelhantes à gasolina da própria montadora têm custo de R$ 0,30 por quilômetro rodado.
A Nissan acredita que é possível colocar o modelo dotado de SOFC em linha de produção até 2020, tempo necessário para que a cadeia de distribuição da montadora japonesa se adeque à nova tecnologia.
“Nossos testes envolvem a geração da energia, porque os motores e baterias já temos em produção. Mas há outros componentes que só com a cadeia de fornecedores montada passam a ser viáveis para produção do carro em série”, diz o gerente de engenharia da Nissan.
TECNOLOGIAS DESPRESADAS
Ironicamente, o etanol parece ser um caminho seguro para o desenvolvimento do carro com motor elétrico, que por sua vez, pode garantir a expansão da produção do biocombustível. É uma troca, como aposta Plinio Nastari, presidente da consultoria Datagro.
“A tecnologia automotiva pode estar indicando um caminho de valorização do etanol e do sistema de distribuição criado no Brasil para este combustível, que poderá ser talvez um de seus mais valiosos ativos”, diz.
Nastari tem destacado o desenvolvimento da célula a combustível movida a etanol entre as metas do RenovaBio, programa de valorização do setor de biocombustível.
Para ele, a tendência é que, nos próximos anos, será acelererada a troca da motorização a combustão por motores elétricos, que hoje compõe apenas 0,1% da frota mundial. E nesse processo, a pegada de carbono vai pesar muito. O fato de o carro ser elétrico não significa que seja inteiramente verde.
“Se a energia elétrica que abastece o carro é originada da queima de combustível fóssil, como carvão, óleo ou gás natural, as emissões de poluentes continuarão crescendo. O etanol aparece como uma alternativa limpa de geração de energia para os modelos elétricos”, diz o presidente da Datagro.
É uma história que se repete. O etanol passou a ser visto como a solução para o fornecimento de combustível a partir da década de 1970, durante o choque do petróleo, quando a disponibilidade do combustível fóssil diminuiu drasticamente.
Para resolver o problema do abastecimento, o Brasil desenvolveu o Proálcool e se tornou pioneiro no uso em escala do etanol como combustível –na década de 1980, cerca de 90% dos carros novos eram movidos a álcool.
Mas quando a crise do petróleo passou, as políticas de estímulo ao biocombustível acabaram, e o etanol foi esquecido, ganhando uma sobrevida mais recentemente, com o avanço da frota Flex.
De maneira semelhante, o motor elétrico era a aposta para o desenvolvimento do carro. Isso, ainda na virada do século 19 para o 20. Em 1900, praticamente toda a frota de taxi de Nova York era composta por carros elétricos.
Nos jornais da época, anúncios destacavam a capacidade dos carros elétricos de então, que conseguiam rodar 100 milhas (ou 160 quilômetros) com uma única carga nas baterias. O motor elétrico já era vendido como a solução mais ecológica.
Por uma série de razões, que passam pelo lobby das montadoras em torno dos motores a combustão e pelo desejo dos consumidores por propulsores mais potentes, o carro elétrico foi esquecido.
Agora, com o avanço das tecnologias de motorização elétrica, que já se fazem presentes em categorias esportivas como a Fórmula-e (com motores 100% elétricos) e a Fórmula 1, que usa motores híbridos (o motor a combustão é ajudado por um elétrico), o apelo do consumidor pelo carro elétrico cresceu.
Além disso, as montadoras tentam se adequar às políticas de redução de emissão. É nesse contexto que as duas tecnologias – a do etanol e a do motor elétrico -, desprezadas no passado, podem se encontrar para fazer um futuro mais limpo.
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