PEC 45: mais desentendimentos do que concordâncias
‘Com essa proposta, governadores e prefeitos, esvaziados de sua autonomia, ficarão na dependência dos recursos do Tesouro, sem possibilidade de executarem políticas próprias de desenvolvimento‘
A aprovação da PEC 45 na Câmara e no Senado, apesar das dúvidas e incertezas ainda existentes, tem criado divisões em diversos segmentos no país, não existindo o consenso suficiente e uma linguagem uniforme para permitir a todos interpretarem seu texto da mesma forma, embora o objetivo, teoricamente, devesse ser igual para todos.
Começando pelo mais geral, a discussão sobre se a medida como aprovada não fere o Pacto Federativo. Alguns juristas entendem, com bons fundamentos, que a autonomia federativa prevista na Constituição significa o direito do Estado ou município regulamentar, administrar e utilizar seu imposto sem restrições, uma vez que respondem para sua população, através do Legislativo, e seu contribuinte que será afetado pelas decisões. Destacam ainda que, embora o texto contenha excesso de detalhes que não deveriam ser constitucionalizados, faltam definições fundamentais para avaliar o efetivo impacto das mudanças propostas.
Lembram que a PEC 45 não representa a simples criação de um IVA moderno, como muitos pretendem fazer crer, mas uma ruptura do sistema atual, com mudanças profundas que atingem os Estados, municípios e contribuintes e, mesmo, o governo federal, fiador e financiador da proposta.
Alguns, ainda, acrescentam que a colocação no texto constitucional, mesmo nas disposições transitórias, de detalhes como o da criação da cesta básica, da proteção da “saúde menstrual”, ou da diferenciação de tratamento entre bebidas e sucos naturais, entre outros itens, desvalorizam a Carta Magna.
Outro grupo, com uma interpretação elástica da Constituição, considera que a centralização da arrecadação e a vedação de conceder incentivos fiscais não interfere na autonomia, tratando-se, simplesmente, de mecanismos operacionais.
Assiste-se, também, a governadores se opondo a governadores no tocante à distribuição dos recursos dos Fundos. Prefeitos contra prefeitos com relação à distribuição das quotas-partes. Tanto os governadores como os prefeitos, no entanto, são contra a centralização no Conselho Gestor.
Os governadores aumentando o ICMS para garantir base mais elevada para o cálculo da alíquota do IBS e sua parcela no bolo da arrecadação. Outros governadores, mesmo “constrangidos”, se sentem na necessidade de aumentar também seu imposto, o que pode se tornar um jogo de soma zero no tocante à partilha, mas, como sempre, castigando os contribuintes.
Os administradores estaduais e municipais terão grande dificuldade para preparar o orçamento, porque, por um longo período, não terão como calcular a Receita, porque, independentemente da alíquota do IVA, é muito difícil estimar com segurança a arrecadação. Isto porque, a mudança da origem para o destino gera uma incerteza sobre seus desdobramentos, porque, ao longo do tempo, essa mudança deverá provocar reposicionamentos de muitas empresas. Além do que, a alíquota única para todos os produtos, e os tratamentos diferenciados a vários setores, dificultam os cálculos. Também o desempenho da economia durante o período de transição com dois sistemas poderá ser negativamente afetado.
Do lado das empresas, setores se dividem entre os que esperam ser beneficiados e aqueles escalados como perdedores, embora, a meu ver, não haverá ganhadores. Os primeiros se colocam contra a expansão dos tratamentos diferenciados, porque isso eleva a alíquota, o que pode resultar na redução do ganho esperado.
Curiosamente, assiste-se alguns líderes de setores que foram privilegiados com a desoneração da folha, vetado pelo Presidente, se movimentando para derrubar o veto, mas criticando os setores que querem “privilégios” de tratamento diferenciado no IBS.
Talvez as maiores divergências sejam entre os economistas, pois existem opiniões para todos os gostos. Um número expressivo de economistas que lidam com a macroeconomia, e que parecem não se preocupar com detalhes, apoia a aprovação do texto como saiu do Senado. Consideram, sem levar em conta o período da transição, que os ganhos com a implantação plena do IVA, compensarão os custos da reforma, pois promoverá o crescimento acelerado do país. Esse argumento parece se basear mais numa crença do que na realidade.
Outros, mais cautelosos, acham que o custo para a União com os Fundos é muito elevado e que não vale a pena continuar nesse caminho. Outros, ainda, entendem que existem muitos problemas no texto aprovado, mas que é possível fazer correções para eliminar as principais distorções. Citam como exemplo do que é necessário fazer a redução do prazo de transição para os contribuintes, mediante a implantação de mecanismo de automação da cobrança e dos pagamentos, com transferência gradativa dos recursos da origem para o destino.
Alguns se preocupam com as inovações introduzidas no Senado, especialmente a utilização da CIDE para assegurar a competitividade das empresas instaladas na Zona Franca. Uns poucos, não apenas criticam a criação do imposto de 1% sobre a extração de minérios, mesmo voltada para exportação, como manifestam o temor de que o Imposto Seletivo, pela abrangência da definição de seu campo de incidência, “meio ambiente e saúde”, possa acabar sendo utilizado de forma descontrolada pela pressão de ambientalistas, como é o caso da tributação dos minérios, e dos intervencionistas que consideram que o Estado deve direcionar o que as pessoas podem, ou devem, consumir.
No tocante ao imposto sobre a extração de minérios, lembram que o Brasil é grande exportador, e que os metais serão cada vez mais necessários para as fontes alternativas de energia. Os concorrentes externos agradecem, mas é preciso considerar também o impacto sobre os preços domésticos, pois aço, cobre e outros metais se espalham por uma ampla gama de produtos, tanto industriais como de uso doméstico.
Aqueles que defendem “travas”, alíquota máxima ou outro mecanismo para garantir que a RT não resultará no aumento da carga tributária, deixam de considerar que os recursos para os Fundos fazem parte desse custo, pois, em qualquer hipótese, serão suportados pelos contribuintes, mesmo que indiretamente.
Finalmente, há os que consideram que são tantas as distorções e os riscos que não é possível fazer as correções de todos os problemas, pois a questão não é só dos detalhes, mas da concepção da proposta, que é desvinculada da realidade. Por isso, se manifestam contra a aprovação da PEC, que do texto original só conservou o número, e defendem que se comece de baixo para cima a discutir os problemas e as correções que podem ser feitas pela via infraconstitucional. Manifestam o temor de que a incerteza e a insegurança jurídica, que deve se manter por longo período se a matéria continuar a ser discutida com base no aprovado, possa causar paralisação de investimentos e, mesmo, dos negócios em geral.
Alguns, ainda, consideram que, como o que promove o crescimento é o investimento feito com critério, se o governo federal dispõe, ou sabe como conseguir os recursos para bancar os Fundos aprovados, que montam a cerca de R$ 800 bilhões em vinte anos, deveria aportar esses recursos em um projeto bem estruturado de crescimento, priorizando formação profissional, tecnologia, economia verde, entre outros setores, ao invés de pulverizar esses recursos, sem garantia de como serão utilizados. Argumentam que o Brasil já cresceu mesmo com o “manicômio tributário”, e que nada impede que se façam ajustes pontuais para reduzir as distorções existentes.
Por sua vez, os setores dos Serviços que não tiveram força política para conseguir “tratamento diferenciado”, embora, no geral, sejam grandes empregadores, começam a estudar alternativas para contornar a tributação, seja dividindo a empresa para se encaixar no Simples, ou para não sair dele, transformando colaboradores em MEIs, indo para a informalidade, total ou parcial (quem não se lembra do com nota ou sem nota), mudando a forma de operar, ou algum outro caminho para não fechar a empresa.
Como parece que a proposta ainda não está suficientemente complexa, defende-se mais artifícios para viabilizá-la. Fala-se em “split payment”, embora estudo da Deloitte para a OCDE de 2017 tenha demonstrado não ser positivo sua aplicação geral, pela burocracia e pressão sobre o capital de giro das empresas, embora possa ser válido apenas para alguns produtos específicos.
Cesta básica nacional, cesta básica estadual e “cashback” são mencionados como forma de impedir que os ricos possam usufruir da redução dos tributos sobre produtos essenciais. A grande maioria dos países da OCDE simplesmente isentou do IVA tais produtos, sem se preocupar que os ricos também se beneficiem. É provável que consideraram que a relação custo\benefício não justificaria esses expedientes. Ou, talvez, por constatar que existe uma imensa classe média baixa, que tangencia as faixas mais baixas de renda, e que seria prejudicada com o aumento da tributação. Ou, ainda, devem ter levado em conta o impacto sobre os preços e os índices de inflação.
Com tantas dúvidas, dificuldades, e incertezas, por que insistir em aprovar a PEC 45 e jogar a economia em um campo desconhecido que pode levar vários anos para consolidar a simplificação anunciada como objetivo da proposta? A quem interessa efetivamente? Quem pode assegurar que o período de transição, mais o tempo para regulamentação e, segundo um jurista conhecido, a sedimentação do sistema que, segundo ele, só ocorre quando se forma a jurisprudência (na verdade as decisões recentes do STF mostram que nem isso garante o contribuinte) não aumentarão a insegurança jurídica e a incerteza?
Argumentos como o que diz que já se discutiu muito o tema e agora não se pode recuar, ou, que há problemas, mas vai ficar melhor do que está, não se justificam, porque ignoram que os custos financeiros e burocráticos, e as incertezas por longo período, não justificam essa decisão.
Se para os Estados e municípios não interessa a reforma (só os Fundos). Para a maioria dos contribuintes (aqueles afetados operacionalmente e os demais que vão pagar a conta dos Fundos) também não. Para os consumidores, especialmente os da classe média, que vão ter aumento de tributação, também não. Então, a quem interessa a aprovação, além daqueles que transformaram essa discussão em questão de prestígio?
Parece que a União não terá problemas, porque o CBS está totalmente sob seu controle, além de dispor de instrumentos adicionais como o IS e a CIDE, mas, por que se dispõe a pagar mais de R$ 800 bilhões em vinte anos para que ela seja aprovada, embora não disponha de recursos para bancar esse montante? Parece que o governo tem a certeza que não será difícil arrancar mais impostos dos contribuintes.
O importante para ele é que, com essa proposta, governadores e prefeitos, esvaziados de sua autonomia, ficarão na dependência dos recursos do Tesouro, sem possibilidade de executarem políticas próprias de desenvolvimento de seus Estados e municípios. Se esse não é o objetivo visado, seguramente será o resultado.
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