Paternidade: antes tarde do que nunca
Surpreendente, a paternidade reconhecida em testamento deixa qualquer família em alvoroço
Vira e mexe se lê nos jornais que alguém famoso – artista pop, jogador de futebol ou um dos dez homens mais ricos do mundo – teve de reconhecer a paternidade de uma criança que até então ninguém sabia da existência.
O fato vira notícia por conta, justamente, do que significa ser filho de alguém famoso ou muito, muito rico. Nesses casos, sem se pesar os prejuízos emocionais, ter a paternidade reconhecida é como ganhar na loteria.
Para lá dos holofotes, casos de reconhecimento de paternidade pululam nos escritórios de advocacia. É quando uma orientação pode fazer a diferença.
É importante saber que o reconhecimento pode se dar por meio de três formas. A mais “simples”, digamos assim, é feito no cartório, quando há a anuência do pai.
É quando, a pedido da mãe, ou de um advogado que a represente, ou mesmo da assistência social – normalmente um funcionário do município -, o pai é chamado ao cartório e reconhece a paternidade sem requerer qualquer prova ou processo.
REGISTRO
Na certidão da criança, além do nome da mãe e dos avós maternos, passa a constar o nome do pai e de seus avós paternos; e a criança pode, ou não, receber o sobrenome do pai.
Outra forma de reconhecimento é aquela por meio de processo judicial. Uma vez decretada a paternidade pelo juiz, se realiza a alteração da certidão de nascimento. E, menos comum, mas também viável, é o reconhecimento de paternidade no testamento.
Dessa última forma, claro, não raro os envolvidos se surpreendem.
Uma dessas surpresas eu pude testemunhar com os fatos ocorridos na vida de Dona Jussara, uma das pessoas mais lúcidas que conheci na vida.
Casada há 40 anos com Sr. Alberto, enfrentou a doença do marido com coragem e, quando me contatou, ele estava desenganado pelos médicos.
Dos três filhos, um deles morava no exterior, tirara férias e estava no Brasil, uma vez que o médico avisara do falecimento iminente do pai.
Preocupada em facilitar para os filhos os trâmites burocráticos, ela me disse: “O Alberto fez um testamento público, gostaria que a senhora analisasse uma cópia para facilitar o processo de inventário”. Eu assenti.
No dia seguinte, ela me ligou completamente atônita: “Não posso lhe encaminhar uma cópia, pois o testamento é cerrado. Eu desconhecia esse documento”.
Eu mesma me surpreendi, mas não tanto. O testador pode a qualquer momento transformar seu testamento público em cerrado – ou fechado –, normalmente motivado por algum segredo, ou para evitar pressões de familiares.
O testador vai ao cartório, faz as devidas mudanças, assina e o documento fica com ele. No tabelionato, o que se registra são as informações que comprovam a existência do testamento, e o que esse documento contém é de conhecimento exclusivo do testador.
Esse registro no tabelionato prova a existência do testamento. E foi com esse registro que Dona Jussara se deparou ao ir ao tabelionato requerer uma cópia de um testamento público que já não existia mais.
Acerquei-me com Dona Jussara sobre possíveis desavenças familiares, ela negou. E me garantiu que até então imaginava um processo de inventário relativamente simples: três propriedades, um bom dinheiro no banco que, dividido entre ela e os três filhos, deixaria a família muito bem amparada.
Passaram-se longos quinze dias em que a agonia de ver o esposo entre a vida e a morte foi acirrada pela dúvida acerca do testamento.
Com a morte do Sr. Alberto, Dona Jussara recebeu a visita de um amigo, justamente o portador do tal testamento. Informei-a que testamentos cerrados são muito bem lacrados e em alguns tabelionatos, inclusive, são literalmente costurados.
Qualquer violação da costura ou do lacre incorre na invalidação do documento e este não é aceito por nenhum juiz, por ocasião da abertura da sucessão do falecido.
O fato é que o documento em questão estava íntegro e momento nada fácil para Dona Jussara foi deparar-se com o segredo ali guardado: o reconhecimento de paternidade de um filho que nunca a família soube que existia.
O amigo contou toda a verdade. Seu marido teve uma relação extraconjugal vinte anos atrás, e só veio saber da existência do filho há cinco anos. Ao saber, o Sr. Alberto teve dúvidas, e providenciou a realização dos testes de DNA, que resultaram positivo.
Disse o amigo que o Sr. Alberto conheceu o adolescente, mas para proteger a família, manteve a questão em segredo. De lá para cá, eventualmente enviava ajuda financeira para os estudos do jovem, e nos últimos tempos vinha lhe pesando a consciência.
Foi quando resolveu mudar seu testamento e reconhecer a paternidade do garoto. O amigo ainda disse que o Sr. Alberto queria que a mudança passasse despercebida, para não magoar a esposa e os filhos.
Bem, de fato, não surpreender a família é impossível, uma vez que, de repente, está lá no testamento mais um membro da família.
Ocorre que uma vez reconhecida a paternidade, os direitos do novo membro se tornam iguais aos dos filhos do casamento “oficial”, digamos assim; ou seja, ele se torna mais um herdeiro necessário.
Obrigatoriamente, metade de uma herança deve ser destinada a esses herdeiros necessários. No caso em questão, são herdeiros D. Jussara, seus três filhos e o jovem filho do Sr. Alberto.
Passada a surpresa com o inusitado, D. Jussara retomou seu jeito prático e resoluto. Tranquilizou-a o fato de ter ficado com uma casa, justamente aquela em que criou os filhos, e o recebimento de uma pensão vitalícia. Dessa vez, parece que todos ficaram satisfeitos.
Nem sempre os fatos se resolvem tranquilamente. No caso relatado, as pessoas envolvidas agiram eticamente. E se o testamento fosse violado?
Quase tudo que foi determinado pelo testador não valeria nada. Exceto uma questão: o reconhecimento de paternidade. Trata-se de uma informação tão relevante, que nem mesmo a violação tiraria sua validade. Ou seja, o jovem filho do Sr. Alfredo receberia sua parte na herança de qualquer maneira.
FOTOS: Thinkstock e Ale Vianna/Estadão Conteúdo