Os negócios da quebrada - Entrevista com Rudá Ricci
Sociólogo, cientista político, diretor da ONG Instituto Cultiva, que trabalha com educação para a cidadania e políticas públicas para o desenvolvimento social
Por que está crescendo o empreendedorismo nas favelas?
O empreendedorismo nas comunidades está crescendo por três fatores principais. O primeiro, porque há este espírito comunitário anterior ao surgimento do empreendedorismo. As comunidades são marcadas pela solidariedade automática, que é afetiva, porque todos sofrem as mesmas agruras e são discriminados. Ora, esta situação original é a base da fidelização de um produto, serviço e comércio que tantos consultores da área insistem ser essencial para um negócio deslanchar. As comunidades dos morros e as favelas são muito coesas.
O segundo fator é o aumento da renda e poder de consumo das classes menos abastadas, algo que envolveu 40 milhões de brasileiros nos últimos dez anos.
Finalmente, nos últimos cinco anos, o empreendedorismo nas comunidades emergiu em virtude do crédito subsidiado e outras facilidades formais, incluindo franquias.
A Data Popular nasceu há dez anos, para termos uma noção de como este fenômeno do comportamento social e econômico desses segmentos até então excluídos e que passou a merecer a atenção de grandes negócios.
Há três anos, um canal a cabo, vinculado à Rede Globo, lançou o Conexões Urbanas, ancorado pelo líder do Afro Reggae José Júnior. A paisagem dos morros é outra, de intenso consumo e de formação de centros comerciais nos seus próprios territórios.
O empreendedorismo nas comunidades já tinha uma base social fácil de trabalhar, para ganhar um consumidor fiel. O que faltava era o dinheiro. Nos últimos dez anos, com a ascensão da classe C, aumento do salário mínimo, oferta de crédito e facilidade para ter cartão de crédito foi possível qualificar o comércio das comunidades.
Na favela da Rocinha há padrão de serviços e comércio de produtos que não se via. Soma tudo isso com o que chamamos de solidariedade automática, que está muito ligada ao afeto, e cria-se um mercado dentro das comunidades. Há dez começou aumentar a renda, e há cinco começou a qualificação deste mercado.
Exemplo: Uma vila de classe C e D de Belo Horizonte criou o site www.observatoriodaserra.com.br para falar da comunidade (abastecimento de água, biblioteca pública) e também para vender produtos da comunidade. Isso acaba virando um comércio gigantesco.
Os consumidores das classes menos favorecidas foram muito humilhados pelos grandes centros de consumo. E eles começaram a procurar alternativas. Eles gastam cada vez mais nos seus bairros. A Daspú, alusão a grife Daslú, é um exemplo.
O empreendedorismo nas favelas não surgiu só por necessidade dos moradores, mas também porque surgiram oportunidades, e também porque nas comunidades existem pessoas com espírito empreendedor. Estou envolvido com vários projetos sociais, e vejo como mudou.
O conceito de comunidade na sociedade significa grupos com alta identidade, em que a identidade individual se confunde com a identidade coletiva. Um bom exemplo é o que acontece com um time de futebol: mexeu com um, mexeu com o time todo.
Nos centros das cidades ou em shoppings centers há alta competição. A Kopenhagen compete com O Boticário, por exemplo, na hora de disputar o consumidor que quer comprar presentes.
No caso das comunidades já temos uma história de identidade comunitária tão forte que a competição é menor. Este é um ambiente, portanto, muito mais favorável para construir um comércio com clientela fiel. Numa comunidade ou favela, a fidelização é mais fácil porque já existe identidade, empatia entre as pessoas.
Na medida em que a cidade “lá embaixo” detesta o morro, as pessoas se identificam pelo contrário. O negro, por conta desta questão de racismo, mesmo sem conhecer outro negro, se sente parte de uma comunidade, acaba se identificando pela negação.
Qual o impacto que este empreendedorismo tem na sociedade?
O impacto é imenso. Em primeiro lugar, do ponto de vista da lógica urbana. Quando o comércio e negócios estão concentrados no centro das grandes cidades, praticamente todas as linhas de ônibus e metrô se cruzam no centro, criando o caos urbano, além da necessidade de manutenção de muitos serviços nesta região (asfalto, limpeza de guias e bocas de lobo, etc.). Com a descentralização, o fluxo de moradores diminui.
Em segundo lugar, o próprio empreendedorismo altera a cultura e os valores locais. A autoestima aumenta, mas também o individualismo, e até há certa competição entre as famílias em virtude da ostentação de seu consumo. Aliás, a palavra ostentação está sendo popularizada nos morros.
Finalmente, a violência passa a ser substituída gradualmente pelos investimentos dos novos empreendedores na urbanização do morro: calçadas, embelezamento de seus negócios, maior segurança, entre outros.
Quais as perspectivas para o empreendedorismo nas favelas?
Olha, a possibilidade dessa novidade fracassar, em 2015, é grande, em virtude do pacote recessivo anunciado pelo ministro Joaquim Levy. O aumento da taxa de juros é, assim, quase criminosa e absolutamente insensível.
Este novo mercado e empreendedorismo popular ainda está deitando alicerces. Não está consolidado. É uma situação que surgiu nos últimos cinco anos e que não está totalmente formalizado.
Sem financiamento, crédito para pequenos negócios ou crediário popular, a esperança de um futuro promissor se desmorona. Algo similar ao que ocorreu com camadas médias na Grécia e Espanha. Basta acompanhar a revolução política que este impacto está gerando nos dois países para se ter uma ideia do que potencialmente pode ocorrer aqui.
A Dilma pode destruir tudo. Inflação em alta, falta de recursos na área social, gasolina e energia elétrica mais caras, falta de água. Vai ficar mais caro levar produtos para o morro.
Temos duas possibilidades. Se o país continuar crescendo e distribuindo renda, começaria a solucionar o problema de mobilidade urbana, uma das questões mais sérias para se enfrentar.
Quando não há comércio local, as pessoas são obrigadas a pagar transporte e todas as linhas de ônibus e metrô cruzam no centro. Uma das soluções urbanas seria levar o comércio para os bairros para que o trânsito desafogue nos centros.
Isso faz com que se comece a gerar renda local, diminuindo problemas de trânsito, por exemplo. Se a renda continuar crescendo, vai haver mais urbanização das favelas, e isso vai acontecer pelo empreendedor, que vai melhorar o negócio, a calçada, a fachada, a iluminação da loja.
Se vier uma crise, vai aumentar o índice de criminalidade, porque a violência é um fenômeno urbano. Quando uma pessoa pobre sente dificuldade para sobreviver e vê a riqueza ao lado, isso desencadeia a violência urbana. Se vier uma crise, vamos ter decadência dessas regiões, que estão começando a se estruturar.
O que distingue o empreendedor de fora e de dentro da comunidade?
A ginga, uma espécie de intimidade que o empreendedor que está fora das comunidades não tem. Exemplo: é um cara gente boa, conversa com as pessoas, meio mano, veste camisa da comunidade, ajuda o outro. Tem um forte, empatia com o cliente dele, ele conhece o cara que compra, a família do cara. Conhece as dificuldades das famílias que são clientes dele, frequentam as mesmas festas e isso cria um laço forte.
“Vai comprar arroz? Compra na venda do seu Zé porque a filha dele entrou na Faculdade e ele precisa de dinheiro”. O que existe é uma solidariedade fortíssima entre o empreendedor e a clientela. E isso é algo muito novo no país. Isso acontece nas comunidades de São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife.
Existe algo um pouco parecido na Colômbia e na Venezuela, mas na medida em que você avança para a América Central, como no caso da Guatemala, as comunidades são indígenas. O Brasil é sui generis. Essa ginga que os empreendedores das favelas possuem eu não conheço em outro local, é um estilo brasileiro. Este jeitão se mistura com time de futebol, festa da comunidade, religiosidade, sofrimento, escola de samba.
Quais são os principais negócios que surgiram nas comunidades?
Pequenos serviços, vendas de botijões de gás, TV a cabo, cabeleireiros, pequenas padarias, mercadinhos, transporte coletivo, lotações, pequenas lojas de vestuário, tatuagem, estilo, lojas de material de construção.
A formalização dos negócios nas favelas é uma tendência?
Olha, o governo desencadeou um processo para formalização das micro e pequenas empresas nos últimos anos. Se entrar em crise essa estrutura, que já é frágil, não vai se firmar.