Os negócios da quebrada - Entrevista com Celso Athayde
Fundador da Central Única das Favelas (Cufa) e do Favela Holding
Pinte um retrato do empreendedorismo nas favelas.
Trabalho com movimento social há muitos anos. Só a Cufa existe há 17. Por experiência própria, vimos que era preciso criar perspectivas e alternativas para gerar renda, além de só formar e qualificar pessoas que normalmente vão para o mercado de trabalho.
A ideia era fazer com que elas refletissem sobre o impacto disso na ciranda comercial, sejam vendedoras de balcão ou empreendedoras. Quando você forma alguém para realizar algo individual, lvocê eva gente para o mercado. Se ensina a varrer, leva para o mercado, seja como faxineiro ou vendedor de vassoura.
E se você se refere a qualquer movimento social que atue para sociabilizar, incluir, está falando de emprego, trabalho e renda em algum meio, seja em que área for. Por isso, resolvemos ousar mais depois desses anos todos. A Cufa já tinha ganho muitos prêmios nacionais e internacionais, com sua atuação nas favelas, mas uma coisa ainda não tinha conseguido resolver: como fazer o favelado sair em grande escala da sua condição de coadjuvante econômico para protagonista.
Por isso, resolvemos criar o Favela Holding. Foi uma saída para o morador de favela se tornar o executivo dessa holding, que mantém a Cufa mas sem nenhum conflito entre comercial e capital.
Fomos a primeira organização social do mundo a criar uma holding, porque uma coisa é existirem alguns negócios surgidos na favela. Outra, é ter uma atividade específica, com legislação especifica, e montar sociedades com propósito específico. Em resumo, todas as envolvidas têm como finalidade o desenvolvimento econômico das favelas e seus habitantes.
Como isso foi formatado e como está hoje?
Montamos uma liga de empreendedores moradores de favelas, para que eles entendessem e falassem de negócios como os empresários de asfalto. Também fizemos parcerias com a Fundação Dom Cabral e o Sebrae para desenvolver ações e cursos que orientassem sobre como fazer parceiras e abrir empresas em sociedade. Grandes empresas com interesse em vender seu produto nas favelas foram investidoras dessa holding, onde colocaram R$ 60 milhões.
A inFavela, por exemplo, é uma empresa ligada ao grupo PPG, um dos mantenedores do Favela Holding. É uma agência de comunicação com expertise no universo particular das favelas. Tem também a Confusão Filmes, que montou e produziu os filminhos da Petrobras que a gente assiste na TV. Também temos uma empresa de negócios financeiros, a Avante, que opera em Paraisópolis. Ou o Favela Vai Voando, criada para vender passagens aéreas nas comunidades.
Em resumo, não tem doação nem ajuda: alguém põe o dinheiro nessas pequenas empresas, mas o que entra no caixa retorna como investimento nessa sociedade, além de gerar lucros aos acionistas. Hoje, o projeto, que formou empresas em março de 2014 tem 20 mil envolvidas. Os resultados financeiros devem sair agora em 2015, e a perspectiva é fechar o ano com mais cem favelas no Rio de Janeiro.
Fale mais sobre o inFavela e objetivo de mirar as classes C, D e E:
Na verdade, isso é uma coisa isolada. Quando se fala em agência de propaganda e marketing especializada nesse território (de favelas), tinha que existir alguma dentro do perfil de desenvolvimento desses lugares e pessoas.
Junto com a ESPM, formamos moradores desses locais para trabalharem nessa agência, pensando nesses negócios com uma inteligência diferenciada para que as empresas de fora tenham acesso a esse território com outro olhar.
E para que esses consumidores tenham senso crítico mais apurado, a ponto de comprar produtos só das empresas que têm respeito por eles, que tenham uma exigência maior sobre que é oferecido por elas... Ou até que o morador da favela se torne o dono da loja – caso do Favela Shopping.
Esse empreendedorismo surgiu como um movimento associado à ascensão das classes C, D e E?
Há um pouco de tudo. Nos últimos 12 anos houve redução da desigualdade social. Por isso hoje existe um avanço na distribuição de renda, ainda muito longe do ideal, mas que provocou uma discussão maior.
As classes C, D e E pulsaram, e isso fez com que surgissem nesse meio muito mais empreendedores do que dinheiro disponível. Antes eles tinham um sonho. Agora, têm oportunidades.
A partir de um aumento da receita não só individual, mas familiar, esse morador de favela não só passa a arriscar mais, mas tem quantidade de informação maior para aplicar isso nos negócios.
Essa é uma vocação natural do morador de favelas: se virar diante das dificuldades. Só que esse "se virar" passou a ter outro nome: “empreender”. E desse jeito melhorou a vida das pessoas, pois é feito de maneira consciente e mais sólida.
Existe um novo empreendedorismo nas favelas – o que é uma grande novidade na relação das grandes marcas e corporações, inclusive internacionais, e como elas passam a ter acesso ao dinheiro do favelado.
É a exigência pelo protagonismo: o homem do asfalto, milionário, para de enxergar o favelado não como cobrador ou mão de obra barata, mas como a outra ponta de uma relação sustentável.
E a novidade é a capacidade do favelado se firmar e provar que tem capacidade de gestão. E não só para vender caldo de cana e pastel de queijo na comunidade, mas fazer um empreendedorismo mais profissionalizado e que gera volume significativo.
E agora com esse cenário recessivo, esse movimento deve continuar?
Existe outra grande novidade: agora, a gente é protagonista. Dia 14 de setembro deste ano abriremos sedes em Nova York e Londres. A inauguração deve culminar com uma grande festa na sede da ONU. Estamos levando nossa “tecnologia social”, de desenvolvimento das favelas para esses lugares, em parceria com ONGs.
Porque esse é um movimento sem volta. (Os favelados) viram o que têm depois da cortina e não vão querer mais dar passo atrás, já que sabem que podem ter acesso às mesmas oportunidades. Como entrar na universidade, por exemplo.
O sonho da minha mãe era que eu fizesse um curso para ser borracheiro para ter mais chances na vida. Hoje, meu filho de 19 anos estuda na London School of Economics. As coisas são diferentes da época dos nossos pais, e o novo jovem da favela brasileira é que vai dar um novo norte no que vem pela frente.
Nossos pais tiveram menos oportunidades, mas nossos filhos terão mais ingerência e participação maior nas decisões de cada casa. Eles vivem num mundo globalizado, e não vão aceitar que as portas que foram abertas sejam fechadas. Já seus pais sequer sabiam que existiam portas.
Estamos em 17 países, como Alemanha, Itália, Argentina, Chile, Hungria, onde tivemos oportunidade de entrar. Porque existem, sim, favelas na Suiça ou na França pela falta de equilíbrio social. Se antes lá só se falava na Torre Eiffel, os moradores da periferia francesa fizeram revoluções porque tudo era escondido – assim como no Rio de Janeiro, onde sempre se vendeu uma imagem.
Hoje, temos uma relação multifacetada com vários países para levar essa tecnologia, não como solução, mas pelo menos como inspiração para as soluções que esses mesmos países podem aplicar.
Existe alguma diferença entre o empreendedorismo “tradicional” e o de favelas?
Nesse primeiro momento, não há informações sobre o da favela para dar escala. O que se sabe é que o empreendedor da favela é um empreendedor em formação, e o do asfalto é mais profissional.
A favela é um novo ambiente de estudo, e lá os negócios quebram mais por falta de conhecimento. Para diminuir essa diferença entre asfalto e favela é que decidimos levar grandes empresas para dar um grau de formação e qualificação que atendam às necessidades dessas pessoas.
Não são só parceiros de operações para qualificar e dar as respostas que você precisa. Eles servem para equalizar e acabar com o déficit cultural das favelas brasileiras.
E entre as favelas do Rio e de São Paulo? Os potenciais são diferentes?
Eu diria que a diferença é o sotaque. Mas é a claro que a Rocinha é diferente de Paraisópolis, ou da Cidade de Deus. Porque depende da facção criminosa que comanda, da liderança comunitária, das organizações que existem lá dento, da força e do conceito da associação de moradores, da conscientização política daquele ambiente, da localização geográfica.
Uma favela do Morumbi ou de Copacabana tem mais acesso à informação do que a da Baixada Fluminense. Mas independente disso, a periferia é muito parecida. Por isso fazemos uma interface com a ONU, dialogando com vários outros países. As diferenças são pequenas: o que existe é a necessidade de o favelado ter oportunidade no asfalto. Fala-se muito em meritocracia, mas as pessoas não terão os mesmo méritos se não tiverem as mesmas oportunidades.
Eu mesmo morei na rua dos quatro aos doze anos, depois num abrigo público e por último na favela. Vendi cachorro-quente, bala e doce no trem. Se uma pessoa como eu tiver oportunidade, aí se fala em meritocracia. Mas também fala-se em exceções, desenvolvidas e criadas por um lado específico da sociedade. A favela não joga a toalha nunca: por isso crescemos, empreendemos e alcançamos lugares que nunca imaginamos.