Os motivos que levaram a rede Dia a fechar lojas e pedir recuperação judicial
Especialistas apontam a mudança do comportamento dos consumidores e o fenômeno do atacarejo como as principais causas das dificuldades da rede de supermercados
A notícia de que a rede de supermercados espanhola Dia entrou com pedido de recuperação judicial no Brasil agitou o mercado na quinta-feira (21). O anúncio foi feito uma semana após a empresa divulgar o fechamento de 343 lojas e três armazéns.
Com dívidas que somam quase R$ 1,1 bilhão, a rede afirmou que continuará operando 244 lojas no estado de São Paulo, onde a companhia tem a maioria das unidades. No entanto, é possível já ver diversas lojas na Capital paulista realizando liquidação total, como as da Vila Alpina e do Sacomã, entre outras.
O Dia divulgou nota explicando a situação. “Desde sua chegada ao Brasil, em 2001, o Grupo tem realizado investimentos e esforços significativos no país. No entanto, a empresa enfrenta os desafios decorrentes das dificuldades no setor varejista, situação que impactou diversas empresas internacionais e nacionais. A recuperação judicial tem como finalidade ajudar a continuidade da operação e se limita exclusivamente ao Brasil, não tendo impacto para nossa situação financeira na Espanha e na Argentina.”
Consultores do varejo ouvidos pelo Diário do Comércio comentam o que tem acontecido com este segmento de mercado e o que deve ocorrer a partir de agora com franqueados do Dia.
Para o especialista em varejo Francisco Bakaus Jr., há uma visível mudança de hábito do consumidor. “Isso vem afetando diretamente o canal varejo. Hoje, os consumidores têm muita facilidade na busca de informações sobre preços e ofertas. E a pulverização dos atacarejos tem contribuído para este cenário no momento”, diz.
Caio Camargo, especialista em varejo, tem essa mesma posição e avalia que o segmento vem se adaptando. “Ao longo dos últimos anos, houve uma mudança de cenário, principalmente nos dois extremos: o avanço do formato de atacarejo, de um lado, e o crescimento do mercado de vizinhança na outra ponta.”
São diversos os fatores que fizeram com que esses extremos crescessem, segundo o especialista, que vão desde as questões ligadas à economia das famílias, ao formato atacarejo e até ao menor deslocamento das pessoas por conta dos trabalhos híbridos. Isso fez com que o mercado de vizinhança crescesse.
“Nesse sentido, o Dia demorou para reposicionar, pois tinha apenas o preço como diferencial, mas com uma experiência ruim de loja. Frente aos novos concorrentes no bairro, como Pão de Açúcar, Carrefour Express ou Oxxo, o Dia não conseguiu se mostrar competitivo ou ficar nas graças do consumidor”, considera Camargo.
DESAFIO GLOBAL
Na opinião do consultor Eduardo Yamashita, COO da Gouvêa Ecosystem, o varejo alimentar de um modo geral está sendo bastante desafiado tanto a nível nacional quanto internacional. Ele também aponta o comportamento do consumidor como uma das causas.
Os modelos tradicionais das lojas operantes nos bairros e até mesmo os supermercados estão perdendo espaço por conta dessa mudança. As últimas crises vividas no segmento, principalmente agravadas pela inflação de alimentos nos últimos dois anos, fizeram com que essa conta de primeira necessidade ficasse muito cara para as famílias, principalmente B, C e D, pressionando o orçamento.
“Sendo assim, as famílias estão buscando novas alternativas em outros canais e também em novas bandeiras de empresas para fazer suas compras a fim de economizar”, explica Yamashita.
Entre os novos canais, ele aponta as vendas on-line, lojas de hiper conveniência e os mercadinhos de condomínios como alternativas adotadas pelos consumidores.
Yamashita ainda destaca o fenômeno do atacarejo como uma causa da migração dos consumidores. Segundo o consultor, isso não é apenas uma realidade do Brasil, mas também em outros países.
HARD DISCOUNT
“No caso específico do Dia, essa proposta de valor que eles oferecem - chamada de hard discount - nunca teve uma adesão muito grande dos consumidores brasileiros”, diz Yamashita.
O hard discount é uma operação que foca no fornecimento de preços baixos de produtos alimentares pela combinação de predominância de marcas próprias, lojas simples, com sortimento limitado, praticamente nenhum serviço, limitados meios de pagamentos, com boa localização e uma divulgação com pouco investimento.
“Na Europa e nos Estados Unidos nota-se um crescimento impressionante dos formatos de lojas hard discount, que sacode o setor de supermercados e conveniência, mas no Brasil, essa moda não pegou muito, principalmente pelo fato de os clientes terem abraçado rapidamente os atacarejos”, avalia Yamashita.
As principais empresas desse conceito no mundo são as alemãs Aldi e Lidl. A Aldi nasceu em 1913 e hoje opera mais de 10.400 lojas em 20 países, sendo 1.800 só nos EUA.
Seu concorrente direto global é a Lidl, criada em 1973, que tem mais de 10 mil lojas em 30 países. A marca só chegou aos EUA em 2017 e tem feito diversas adaptações para atender características específicas do consumidor norte-americano.
OXXO
Questionados se a rede mexicana Oxxo, que atua no segmento de lojas de bairro com conveniência, pode assumir as operações do Dia, os especialistas em varejo consultados pela reportagem acham que ainda é cedo para afirmar ou até não acreditam nesta teoria. Talvez outras marcas como Carrefour Express e Pão de Açúcar Minuto possam absorver esse mercado.
Bakaus Jr. diz que “o perfil de loja é diferente dos outros varejos e o Oxxo está focado no mercado de proximidade, conveniências e produtos básicos, ou seja, compra rápida e emergência, e não é isso que o Dia propõe.”
Camargo não vê o Oxxo tomando essa lacuna porque a maior parte dos consumidores ainda está nas mãos de mercados pequenos, sem bandeiras fortes. “Há uma dificuldade de grandes players entrarem em pequenas regiões, até pelo formato e custos maiores, dado o rigor fiscal e operacional que precisam seguir”, avalia.
Ele acredita que ainda há muita oportunidade para os pequenos negócios que entendem melhor seu consumidor e conseguem oferecer bons produtos e serviços. Por outro lado, “pequenos empreendedores ainda focados somente em preço tendem a serem passados para trás pelas grandes marcas.”
FRANQUEADOS
E como ficam os franqueados do Grupo Dia com a recuperação judicial?
O Dia se posicionou sobre essa questão. “As operações seguem normalmente, sem mudanças para clientes e colaboradores. O principal objetivo da recuperação judicial é proteger a empresa enquanto fazemos a reorganização financeira da companhia. Isto é, o negócio permanecerá funcionando normalmente, incluindo o relacionamento com clientes, fornecedores e franqueados, além da distribuição e venda de nossos produtos.”
Bakaus Jr. lembra que, para os franqueados de São Paulo, cujas lojas seguem operando normalmente por enquanto, é possível seguir com o negócio. “Vemos já uma movimentação de mercado por esses franqueados, que geralmente já são varejistas. Acredito que outras redes regionais devem assumir muitas operações deixadas pelo Dia”, afirma.
Já Camargo acha que é cedo para um desespero por parte dos franqueados. “Tudo vai depender de como a empresa irá realizar sua governança daqui para frente. Na maioria dos casos, os franqueados acabam tendo um duro cenário pela frente, com restrições de compras, marketing, entre outros. Isso torna a venda complexa, mesmo para aqueles que ainda acreditam no negócio.”
Mas ele destaca outro agravante: o consumidor poderá também deixar de confiar na marca, uma vez que a notícia é de fechamento. “A tempestade formada entre notícias e falta de produtos nas gôndolas podem acabar de vez com qualquer chance de recuperação”, considera Camargo.
Já Yamashita levanta uma questão que deve ser considerada em um cenário como esse. “No contrato, há a possibilidade de rescisão, caso o franqueado desejar. Dependendo do acordo feito com a franqueadora na entrada, pode haver uma multa a receber, além da rescisão”, diz.
Mas o problema preocupa muito os franqueados. É o caso de um deles, que possui uma unidade do Dia em um bairro da Zona Leste, mas que não quis se identificar. Ele fez uma reforma e modernização recentemente na sua loja.
“Ela está bem diferente das demais e investi nisso no ano passado. Fui pego de surpresa com tantas notícias negativas, apesar de ter noção dos últimos resultados financeiros do grupo. Não sei o que fazer, por enquanto. Inicialmente, vou continuar operando normalmente e aguardar os próximos capítulos para tomar uma decisão. Depois da reforma, o movimento até cresceu um pouco porque melhoramos a experiência em loja”, conta o franqueado.
RECUPERAÇÕES JUDICIAIS
O recente surto de pedidos de recuperação judicial no Brasil, que registra um aumento de quase 70% no ano de 2023 na comparação com 2022, sinaliza uma tempestade que vem afetando centenas de negócios no Brasil.
E não é uma exclusividade do setor alimentício. Mais de 1,4 mil empresas de diversos setores e portes seguiram o caminho de gigantes como Americanas, 123 Milhas e SouthRock. A advogada Mariana Domingues, especialista em direito empresarial, faz uma análise das razões que estão por trás dessa tendência.
“Este aumento substancial nos pedidos de recuperação judicial reflete o momento econômico recente, potencializado por desafios internos e externos enfrentados pelas empresas e tendo ainda a pandemia como um fator que exacerbou problemas estruturais e de liquidez já existentes”, explica Mariana.
Para a advogada, a recuperação judicial é um importante instrumento para a reestruturação e sobrevivência das empresas, mas alerta que ela não é uma solução mágica. “O sucesso da recuperação judicial depende de um plano sólido e da capacidade da empresa de se reinventar e adaptar ao novo cenário econômico”, avalia.
A especialista destaca as dez principais razões: endividamento exacerbado, mudanças no comportamento do consumidor, custos operacionais elevados, questões legais e regulatórias, falhas na gestão e no planejamento, litígios prolongados e custos judiciais, dificuldades em renegociar dívidas, desafios na execução de garantias, falta de instrumentos de recuperação extrajudicial e fim dos benefícios fiscais e de parcelamento de impostos.•