O povo não é bobo
O chamado controle social da mídia também atingiria o jornalismo cidadão, que encontramos na cobertura da crise hídrica
Com a intensa cobertura das manifestações espontâneas e crescentes dos cidadãos contra os governantes pela mídia de massa, abre-se um fosso intransponível e perigoso entre o falso argumento do “controle social da mídia” pelos políticos de plantão, de um lado, e a mídia e a cidadania, de outro.
O que torna urgente a qualificação do debate sobre a função social da mídia, que de certo deve servir mais aos cidadãos do que aos ocupantes episódicos do poder.
Mas, para uma defesa mais eficaz desta fundamental instituição da vida democrática torna-se imprescindível que, não apenas os jornalistas façam da liberdade de imprensa a sua luta corporativa, como, sobretudo ajudem os cidadãos, seus últimos beneficiários, a perceber de que se trata de uma defesa da própria democracia.
Neste caso, é de se perguntar se o jornalismo político tem facilitado esta percepção. Senão, vejamos um dos mais eminentes jornalistas brasileiros, Carlos Alberto Sardenberg, que, em dois recentes artigos “O povo não é bobo” (leia aqui), para além de repudiar o chamado controle social da mídia e a mídia chapa-branca, argumenta que só a liberdade de imprensa é suficiente para garantir um jornalismo de alta credibilidade, vide a diferença abismal entre as audiências da mídia pública e privada.
Mas pergunto: qual o papel do cidadão que garante esta audiência? Há anos tenho me dedicado ao tema e, apesar de formar fileira com a argumentação jornalística, não sou daqueles que justifica tudo pela audiência. Até por que ela é resultante da qualidade da educação, sobretudo quando se fala da informação política.
Tenho defendido que, para além dos políticos e dos proprietários dos veículos de comunicação, a imprensa é importante demais para ficar a cargo apenas de jornalistas. Senão, vejamos, por exemplo, este fenômeno do noticiário sobre a crise hídrica.
Fica evidente nessas coberturas uma abordagem incomum dos cidadãos comuns pelos profissionais da mídia. Seja pela pauta do apagão hídrico, seja pela do apagão moral do petróleo, o noticiário político continua priorizando os governantes e desperdiçando uma oportunidade única de aliança dos jornalistas com os cidadãos eleitores.
Mesmo porque as poucas conquistas cívicas da sociedade nas últimas décadas só foram alcançadas com o apoio da mídia.
Se é preocupante a deterioração dos valores morais excessivamente exposta no cotidiano do noticiário político, a promoção destes mesmos valores nunca esteve tão presente no noticiário sobre a crise hídrica. Se no imaginário social brasileiro resultante do noticiário político só se corrompem valores incessantemente, o cidadão corrupto e corruptor das telenovelas acaba que “justificado” pela delinquência generalizada.
E me pergunto sobre a razão desta visão maniqueísta entre o alegado “trigo” do jornalismo denuncia a da política e o “joio” do jornalismo cívico das demais editorias. Atente-se para esta evidência nas recentes reportagens sobre o uso racional dos recursos hídricos em verdadeiras campanhas de utilidade pública onde não se denuncia apenas os maus cidadãos “esbanjas”, de mangueira em punho varrendo suas calçadas, mas se exalta os cidadãos “maneiras”, verdadeiros agentes de cidadania criadores de mil esquemas de reutilização de água.
Aliás, com exceção do noticiário político, em todas as demais áreas do jornalismo já se dá espaço para a construção de um novo imaginário social brasileiro pela ação da cidadania.
Uma vez que o jornalismo cívico surgiu exatamente para compensar o denuncismo do dito jornalismo investigativo da cobertura política. Não há editoria hoje onde o jornalismo mais responsável, para além de denúncias de omissão ou desvios de conduta dos agentes públicos, não se engaje também na mobilização do cidadão comum e na demonstração de sua responsabilidade cívica.
Mas exatamente no campo que mais carece de responsabilidade cívica, que é a vida política do país, nosso jornalismo só abre espaço pros políticos eleitos e quase nunca pros cidadãos eleitores. Aliás, de modo incongruente. Pois, é o próprio Sardenberg que cita o clássico princípio do jornalismo: “a notícia não é o cachorro que mordeu o homem, mas o homem que mordeu o cachorro”.
Se a notícia é o incomum, e o comum é o fato de nossos políticos estarem a roubar o dinheiro público, e o incomum o fato de os cidadãos exercerem o dever político de fiscalizá-los, o jornalismo político, justamente ele, não estaria cumprindo a sua mais nobre missão de noticiar o incomum. E com isso desmobiliza a cidadania política, fechando o círculo vicioso de nossa crise civilizatória. Se o povo não é bobo, como diz o jornalista, quem seria? Os separadores do joio do trigo?
A reportagem política, com sua obsessão pela cobertura fácil do delito político generalizado, não se esforça em buscar os raros exemplos de cidadãos engajados no controle social dos políticos. Exatamente no momento em que mais precisa destes agentes de cidadania para reverter a ameaça de controle político da mídia.