O país dos curupiras
Não estamos disputando uma eleição sobre quem governará o país, e sim a identidade sobre quem somos realmente, qual seja o nosso verdadeiro caráter
Nos vídeos de divulgação do lançamento de meu novo livro, “Curupira”, na versão em português, eu afirmava que o momento nacional não poderia se resumir apenas a eleições, mas deveria ser compreendido para mais além, como um momento de inflexão da cultura brasileira. Como a possibilidade de superarmos a meia-verdade da cultura barroquista pela verdade inteira da tradição iluminista. Já se disse inclusive que, para além das eleições, estamos atrás de decidir quem somos.
E a verdade inteira é de que Curupira, como enganador do mundo, de tanto enganar os outros, acaba por se enganar a si mesmo. De tanto enganar os bandeirantes pela virtuosa causa de guardar a floresta, acaba por se enganar de que inverter suas pegadas era o bastante para frear o ânimo explorador daquela brava gente brasileira.
A prova inconteste foi o transbordamento de nossas fronteiras para muito além de Tordesilhas, como os portugueses já haviam intentado para muito além da Taprobana um século antes. Transbordamento espiritual de toda uma cultura, para além de geográfico, e principal signo de nosso barroquismo mental, como demonstro no meu livro anterior “Destorcer o Brasil”.
Está fazendo duas décadas que estudo o tema que serviu de objeto do Instituto de Cultura de Cidadania A Voz do Cidadão, e que teve como seu programa-chave o recrutamento de mais de 300 Agentes de Cidadania que destorceram o equivocado conceito de cidadania como intitulação de direitos, sem a correspondente assunção do dever cívico de monitorar e participar da vida política.
Pois o problema do barroquismo mental é não entender que suas figuras retóricas são, ipso facto, figuras de expressão e não de apreensão da realidade - quanto mais instrumentos de ação pública. Quando o princípio iluminista para a gestão pública é o de fazer o Estado servir aos cidadãos e não se servir dos cidadãos.
E o cabalístico número 12 sempre me perseguiu no decorrer desse tempo e para além dos 12 dragões da maldade presentes e sintetizados na história de Curupira. Para além de polarizações político-eleitorais, procurava identificar problemas e propor soluções de políticas públicas para 12 áreas de atuação indelegável do serviço público: instituições políticas, justiça, controle e gestão, segurança pública, defesa, economia, educação, saúde, infraestrutura e transporte, cidade e meio-ambiente, ministério público e chancelaria.
E o que aconteceu? O transbordamento emocional do nosso barroquismo mental é sempre mais forte do que a fria razão com que deveríamos encarar as questões públicas. Sobretudo nos grupos de discussão dos agentes de cidadania nas redes sociais que desde então não escapa da polarização político-partidária. Dado o princípio da identidade das comunidades sempre se colocar em oposição da grande comunidade de alteridades. O patrimonialismo atávico brasileiro, de um lado, e o interesse público, apenas esboçado como desejo geral de todos.
Dada a demonstração da tese do barroquismo mental como insight do “Destorcer o Brasil”, foi necessário ir mais fundo em nossas raízes e outra vez me deparar com o cabalístico número 12 das torções, retorções, contorções e distorções de nossa cultura barroquista, com ressalva das letras e artes por evidente.
Pois 12 foram nossas principais torções históricas, como demonstro no conjunto de eventos do descobrimento da ilha de Santa Cruz e do pau-brasil, do inexistente pecado tropical, da educação como catequese jesuíta, da independência de Portugal, da orfandade e da maioridade de Pedro II, do processo de abolição da escravidão, do golpe da república, do díptico positivista da bandeira, do coronelismo e seus decorrentes fenômenos de patrimonialismo e esquerdismo.
Pois 12 foram nossas torções políticas: a farsa da democracia, a lei que não cola, a farsa da federação, os três poderes que são dois, o nepotismo cruzado, foro privilegiado, penduricalhos fura-teto, tribunais de faz-de-contas, voto compulsório, prerrogativas e privilégios, a terceira via, os subsídios, incentivos e bolsas que desigualam a isonomia perante a lei.
Pois 12 foram nossas mais decisivas torções da justiça, que deveria ser a principal missão do Estado: seu poder não-soberano, seu ativismo judicial, seu processualismo e garantismo, seu corporativismo, sua execução em última instância e prescrição penal, o abuso da corte suprema como quarta instância de recurso não constitucional.
O que culminou com a própria desmoralização da justiça pela recente atuação político-partidária de ministros-vassalos de governantes esquerdistas, como o moderador-mor Dias Toffoli, o garantidor-mor Gilmar, o inquisidor-mor Alexandre, o grande, o defensor-mor Fachin, o inventor-mor Lewandowski e o ativista-mor Barroso.
Se não, encaremos suas figuras retóricas com que apreendem de modo absolutamente boçal a realidade nacional, produzindo o impasse da estagnação a que condenam toda a nação: a metonímia da descondenação do ex-presidiário do sinistro Fachin; a ironia paradoxal da censura aos cidadãos e seus representantes da sinistra Carmem do cala-boca-não-morreu; a multiplicação dos papéis do indevido processo legal do sinistro Alexandre, o grande, com o hipérbato da inversão do juiz Moro como réu; a hipérbole do autoproclamado poder moderador do sinistro Toffoli; o desentendimento da liberdade do sinistro Gilmar e o transbordamento legisferante (da transparência das urnas e da regulação das eleições) do sinistro Barroso.
Uma vez que também são 12 nossas principais torções morais: da trapaça de Caramuru à indolência de Macunaíma, do jeitinho do Jeca Tatu ao escracho de Odorico Paraguassu; do bom malandro do drible, do traficante drogadito, do policial bandido, do miliciano social, da puta que goza, do amigo da onça, do santo do pau oco; do real como farsa da meia-entrada inteira, do puxadinho e da gambiarra, da meia-virgem e da socialite socialista ou esquerda caviar.
Curupira é a síntese universal da resiliência barroquista que transborda as nossas artes e letras, pelas 12 torções de valores representados pelos 12 dragões da maldade: vida, liberdade, propriedade, honra, justiça, cidadania, democracia, política, moralidade, cultura, fé e beleza.
Quando nem o maior teórico e crítico Heinrich Wölfflin, ao listar os cinco pares de conceitos fundamentais da transição da arte clássica para a barroca, não os subordinou à sua intrínseca condição de torção: do traço linear para o pictórico, dos elementos plurais para singulares, da forma fechada para a aberta, do plano único para a perspectiva e da luz clara para a obscuridade do chiaroscuro.
Por isso é que afirmamos que o momento nacional transborda as meras eleições, sobretudo de senadeiros que insistem em celebrar conluios com sinistros supremos.
Uma vez que se trata de superar a resiliência cultural do barroquismo mental e ingressar já tardiamente no iluminismo que trilhávamos no Império e na primeira república quando nos desviamos com a tentação revolucionária dos anos 30 e suas sucessivas crises.
Pois, como afirmo nos demais vídeos de lançamento do “Curupira”, não se trata apenas de compreender o significado das atuais eleições, mas de um momento de inflexão da cultura brasileira, da possibilidade de superar a meia-verdade da cultura barroquista pela verdade inteira da tradição iluminista. Já se disse inclusive que, para além das eleições, estamos atrás
de decidir, afinal, quem somos.
Pois a questão da meia-verdade é antiga, tanto na vertente da Grécia clássica entre sofistas e filósofos, quanto na medieval guerra entre guelfos e gibelinos. Ou da Renascença entre católicos e protestantes. Não mentir era a condição primeira para o cumprimento de qualquer dos mandamentos da lei mosaica.
Se a reforma protestante abriu a modernidade, de lá para cá a farsa barroca retorceu a mentira em meia-verdade. E o esquerdismo fez letra morta da “honra burguesa”. Quem nunca se impressionou com o “médico” que largou o poder para levar a revolução para as selvas da América Latina? Pois é. Era meia-verdade, como demonstra seu registro profissional de enfermeiro na carteira de identidade argentina.
Pois não estamos disputando uma eleição sobre quem governará o país; estamos disputando a identidade sobre quem somos realmente, qual seja o nosso verdadeiro caráter!
A inflexão cultural que vivemos é a de destruir as instituições (vide a diferença da credibilidade do Supremo da Lava Jato com a de sua destruição) e institucionalizar a barbárie da polarização e facciosismo. O meme que circula nas redes sociais sobre o descrédito do STF é um perigoso precedente: o STF é um escritório de advocacia de 55 mil políticos e altos burocratas com foro privilegiado, quando temos a maioria dos 550 mil encarcerados temporários sem o devido processo legal.
E o Senado engavetando pedidos de impeachment dos sinistros e concedendo regalias e quinquênios aos mesmos, o que provocará uma avalanche de “isonomias” entre todo o funcionalismo público. Por isto a decisão de descondenar (figura barroca) o ex-presidiário é a maior torção barroquista da cultura brasileira.
Por isto, as eleições mais importantes não são as dos executivos, mas as dos legislativos e sobretudo a de trocar os senadeiros por verdadeiros senadores.
O resto é continuarmos a ter a alma tomada pelo espírito enganador de Curupira, que de tanto enganar a todos acaba por se enganar a si próprio e seus 12 dragões da maldade.
**As opiniões expressas em artigos são de exclusiva responsabilidade dos autores e não coincidem, necessariamente, com as do Diário do Comércio