Liberdade para matar

É consternador que, no momento em que autoridades e sociedade se articulam para reverter a catástrofe que se abate sobre o Rio de Janeiro, a justiça estadual cometa o equívoco de neutralizar os meios para sua prevalência

Sérgio Paulo Muniz Costa
16/Ago/2018
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Liberdade para matar

Sem a repercussão que a gravidade de seu conteúdo encerra para todo o País, o Acórdão da 3 a Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, de 1o de agosto de 2018, vai bem além da pretensa reparação de danos a vítimas de confrontos entre policiais e traficantes naquela cidade.

É, por todas as formas, estarrecedor que, no momento em que a violência no País escala ao recorde de 63.800 mortes em 2017, a autoridade judiciária estatua que “a origem do projétil é desinfluente para a configuração da responsabilidade civil do Estado quando há troca de tiros entre policiais e marginais em locais públicos e com grande concentração de pessoas”, para daí concluir que a “política de enfrentamento aberto de delinquentes, com troca de tiros entre forças policiais e criminosos não consoa com o conceito de segurança pública disposto no art. 144, caput, da Constituição da República”.

A citação de trechos do acórdão ilustra à perfeição a que ponto de ativismo judicial chegamos no Brasil. Ativismo escancarado que não se peja em legislar à revelia da divisão de poderes da República, a título de “interpretação evolutiva, leitura moral da Constituição”.

Neste caso, a “interpretação pragmática” vai sim levar a sociedade brasileira à situação surreal em que criminosos fazem o que querem e bem entendem sob a chancela da lei.

Bandos fortemente armados poderão investir uns contra os outros em disputas territoriais pelo controle do tráfico de drogas ou contra instalações policiais e militares sem que as forças legais os enfrentem.

No mínimo, terão assegurados como santuários as áreas que já controlam, nas quais as polícias não poderão intervir. E tudo isso sem que tenha sido necessário vencer em combate as forças legais, neutralizando-as ou desmoralizando-as, como aconteceu em países vizinhos.

Situação surreal sim, por que não há eufemismo que desagrave a ofensa liminar à ordem pública e constitucional que esse disparate jurídico significa. E como chegamos a ele?

Através de um contorcionismo interpretativo que combina grosseira manipulação da História e indisfarçável vício ideológico, como se vê no documento público perfeitamente passível do escrutínio da sociedade que é a Apelação Cível 0015288-05.8.19.0001.

Haja elasticidade para enxergar no enfrentamento de criminosos armados um “resquício da ordem constitucional e política anterior, que, em detrimento da pública, prezava a segurança nacional e operava a partir de conceitos como o de guerra interna revolucionária ou subversiva”.

Para desfazer esse imbróglio, cabe inicialmente colocar que a segurança nacional não é um conceito instituído pela Constituição promulgada pelo Congresso em 1967.

O Conselho de Defesa Nacional foi criado em 1926, renomeado como de Segurança Nacional na Constituição de 1934, retornando sua designação de Defesa Nacional na atual Constituição, ficando bem caracterizada a sua continuidade no arcabouço legal do País.

Em seguida, lembrar que “a segurança pública não deve ser confundida com segurança nacional”, como alertou um dos principais teóricos do tema, o professor Mário Pessoa, em seu livro “O Direito da Segurança Nacional”, obviamente desconsiderado pelo afã probatório do acórdão.

E, sem apriorismo algum quanto à Constituição de 1988, entender que ela não ostenta qualquer ineditismo em relação à segurança individual, como pretende a exegese vertida no acórdão.

Todas as constituições brasileiras anteriores à de 1988 asseguraram o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade.

O que a cognominada constituição cidadã fez foi definir os limites das atribuições dos órgãos públicos incumbidos da sua execução, como aconteceu com outras normatizações ao longo da história constitucional do País.

Quanto à ideologia, para reconhecê-la basta a leitura do texto do acórdão, baseado em opiniões de autores reconhecidamente de esquerda e prenhe da retórica radical que infestou o País nos últimos anos.

É de se lamentar que uma corte brasileira assuma argumentação equivocada e facciosa, especialmente na unidade da federação que vive a crise da crise, ou seja, o particularismo trágico de um desastre repetido, agudizado e ampliado no contexto do País.

O Rio de Janeiro é o epicentro da onda de violência que tomou o Brasil nas últimas décadas, desde quando a leniência das autoridades permitiu que o crime se expandisse na geografia, na economia, na política e na moral, contaminando por fim toda vida social da cidade.

É consternador que, no momento em que autoridades e sociedade se articulam para reverter a catástrofe que se abate sobre o Rio de Janeiro, a justiça estadual venha a cometer o equívoco de neutralizar os meios para sua prevalência.

Tamanho estranhamento autoriza especular a respeito das razões que levaram à reforma da sentença original, de maneira a desinstrumentalizar o Estado brasileiro em sua ingente luta contra o crime e a violência.

A fúria do ambiente eleitoral? Ou quem sabe o delírio de uma nova comissão da verdade para perseguir os agentes da lei, ontem, hoje e sempre? Afinal, foi exatamente dessa maneira que se fizeram as fortunas e carreiras que impulsionaram o projeto de conquista de poder pela esquerda revolucionária no País.

Talvez seja cedo para dizer.

O certo é que, a subsistir em outras esferas o entendimento do acórdão em tela, o crime no Brasil terá carta branca, assegurando-se-lhe a liberdade que o Estado de Direito democrático jamais cogitaria de conceder a seus agentes.

A de matar: impunemente, indiscriminadamente e imoralmente.

IMAGEM: Thinkstock

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