Instituições e anomia

No atual governo, as restrições impostas pela legislação não vêm sendo observadas se forem obstáculos para dificultar seus objetivos

Marcel Solimeo
28/Abr/2023
Economista-chefe da Associação Comercial de São Paulo
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Instituições e anomia

Instituições são as bases para o desenvolvimento dos países. Pode-se defini-la como “as regras do jogo”, que permite a uma sociedade interagir e promover o desenvolvimento, ao estabelecer limites e constrangimentos para a atuação dos agentes políticos, econômicos e sociais.

As instituições podem ser formais ou informais e, desde que aceitas pela sociedade, desempenham seu papel principal que é reduzir as incertezas. São os pilares que sustentam o regime democrático e o sistema econômico do país, como direito de propriedade, a garantia dos contratos e as liberdades individuais, como a de expressão e do justo processo legal, e a liberdade de empreender.

No caso brasileiro, as principais instituições são a Constituição, as leis e decretos, as regras de proteção aos órgãos públicos, com mandatos ou vedações e usos e costumes consensualmente aceitos pela sociedade, que asseguram a alternância dos governantes, e os limites de seus poderes.

O objetivo das instituições é impedir que o poder seja exercido de maneira absoluta pelos governantes, e assegurar previsibilidade tanto para os agentes econômicos como aos atores políticos e sociais.

No atual governo, no entanto, as restrições impostas pela legislação não vêm sendo observadas, se forem obstáculos para dificultar seus objetivos de ocupar todas as posições que possam ser usadas para negociação política, ou simplesmente utilizadas paras fortalecimento de seu partido.

As restrições, no geral, visam assegurar continuidade de algumas políticas, preservar a direção de alguns órgãos em períodos não coincidentes com os mandatos dos governos, e impõem exigências para a nomeação para algumas funções, para evitar o uso político e oferecer segurança às instituições.

Mesmo a Constituição não se revelou como obstáculo que dificulte muito os avanços, como se viu com a facilidade que se emendou o texto constitucional para a aprovação da PEC do gasto. Também as leis que visam resguardar as estatais do uso político, não são garantias suficientes, bem como mandatos não coincidentes, como se verificou com a demissão de alguns funcionários sem observar as restrições.

As críticas à independência do Banco Central e à política de metas de inflação parecem visar muito mais a mudança do presidente da instituição, para substituí-lo por alguém afinado com o governo, porque o Presidente parece não aceitar restrições a seu poder, que parece considerar absoluto por ter sido eleito pela maioria da população.

Anos atrás, um amigo, economista de um organismo internacional, dizia que não acreditava que o Brasil pudesse se tornar uma nação realmente desenvolvida porque não havia aqui o respeito às instituições.

Para exemplificar disse que, “no mundo inteiro, o direito de propriedade é defendido pelo proprietário e pela polícia. No Brasil, esse direito depende do Poder Judiciário. Nos países desenvolvidos, qualquer agressão ao direito de propriedade é punida. No Brasil, nada acontece com os agressores.”

Referia-se, então, às invasões do MST e, principalmente, a omissão do governo e da sociedade a respeito.

Na verdade, o que ocorre novamente no Brasil em relação às invasões e agressões ao direito de propriedade pelo MST e seus aliados é o que Ralf Dahrendorf, sociólogo alemão, em seu livro intitulado A Lei, editado há muitos anos pelo Instituto Liberal, chama de “estado de anomia”, que se caracteriza por “uma condição social em que as normas reguladoras do comportamento das pessoas perderam validade”.

Para Dahrendorf “se as violações das normas não são punidas, ou não são punidas de forma sistemática, elas tornam-se em si, sistemáticas... A impunidade, ou a desistência sistemática de punições liga o crime e o exercício da autoridade. Ela nos informa sobre a legitimidade de uma ordem”.

Mais uma vez, a exemplo do ocorreu no passado, e que motivou a observação do economista, o que vem ocorrendo em relação ao MST, com o Abril Vermelho, é que, a certeza de que não haverá punições, decorre, não apenas da omissão, como também do estímulo do governo para suas ações. A inclusão do líder do movimento, João Pedro Stedile, na comitiva que foi à China com o Presidente, depois dele ter anunciado o Abril Vermelho, revela o apoio governamental às invasões, apesar de alguns protestos tímidos de alguns ministros. Além disso, as exigências do MST para as nomeações no INCRA revelam que ele se considera com força suficiente para impor suas posições.

A passividade com que a sociedade brasileira vem aceitando essas agressões resulta, em grande parte, do processo gradativo de anestesia, na linha pregada por Gramsci, através da mudança do sentido das palavras, com a ditadura do “politicamente correto” que, ao mudar o sentido das palavras, faz com que elas passem a indicar quase o seu contrário.

Assim, invasão de propriedades, crime configurado no Código Penal, passa a ser tratado como “ocupação”. Invasores são chamados de “sem terra”, como a sugerir que eles têm um direito a terra, embora grande parte deles seja de origem urbana, e uma parcela cada vez maior da população brasileira seja “sem terra”, na medida em que o país se urbaniza. Grupos que agridem o direito de propriedade e, muitas vezes, até a integridade física de outros, são considerados “movimentos sociais” e suas agressões tratadas como “reivindicações de excluídos”.

Parece que precisamos começar a chamar as coisas novamente por seus verdadeiros nomes. Esse talvez seja o primeiro passo para se discutir seriamente os riscos que esses atos de violência podem acarretar para o país: crime é crime, não importa quem ou porque o cometa.

Considerar que a “violência contra as coisas” pode ser aceitável quando praticada por determinados grupos é, segundo Dahrendorf, um equívoco. Primeiro porque ela pode descambar para a “violência contra as pessoas”. Segundo, e mais importante, porque representa uma “violência contra as instituições”, que são as bases sobre as quais se assenta a convivência social e a economia de mercado.

Talvez os últimos acontecimentos, mostrando que o MST e seus parceiros não estão preocupados com “reforma agrária”, mas, sim, em impedir o progresso tecnológico do agronegócio, incluindo a energia renovável, no qual o Brasil é extremamente competitivo no mercado internacional, possa despertar a atenção do Congresso, dos empresários dos demais setores, e da sociedade, para que se posicionem e exijam do governo o cumprimento da Lei e a manutenção da Ordem.

Como alertam Levstiky e Ziblatt, em seu livro “Como as democracias morrem”, a morte das democracias é um processo gradativo e lento, mas se não houver reações, se tornará inexorável.

 

IMAGEM: Freepik

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