Fim de linha para as ideias de golpe e traição

Dilma enfraquece a ideia de "golpe" ao participar do rito de impeachment no Senado. E Temer não a "traiu" porque não devia a ela lealdade. Ele se elegeu como vice da República e não como subalterno da presidente

João Batista Natali
22/Ago/2016
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Fim de linha para as ideias de golpe e traição

Com a ressaca da Olimpíada e a volta das atenções à política, a presidente afastada Dilma Rousseff cumpre, a partir de quinta-feira (25/8), a reta final dos procedimentos que deverão afastá-la uma vez por todas.

Ela decidiu comparecer ao plenário do Senado na segunda-feira (29/8) para se defender pessoalmente no processo de crime por responsabilidade. É um gesto louvável, mas que ao mesmo tempo prejudica a narrativa do "golpe".

Ela deixará de assumir passivamente os efeitos dos procedimentos constitucionais e participará de forma ativa, como ré, dos trabalhos presididos pelo presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Ricardo Lewandowski. Não é golpe . É o que prevê a Constituição.

Seria no mínimo histriônico que Dilma reconheça por sua presença a validade de um rito, que seria em seguida desqualificado por uma designação pejorativa.  

A segunda questão presente na narrativa petista, a da "traição" do presidente interino, é um pouco mais complicada e mistura argumentos políticos e jurídicos com precedentes históricos.

Trata-se de saber se, ao receber 54.501.118 votos no segundo turno presidencial de 2014, Michel Temer foi eleito vice-presidente de Dilma ou vice-presidente da República.

Não é uma pergunta puramente semântica. Ela é institucional. O vice é da República – a ela devendo lealdade – e não um serviçal da cabeça de chapa, que, por qualquer motivo, o leve ao exercício do poder.

A última vez em que essa questão foi levantada ocorreu em 1985. O Colégio Eleitoral – as eleições eram ainda indiretas – elegeu em janeiro, para a Presidência, Tancredo Neves (1910-1985), tendo como vice José Sarney.

Na véspera da posse, marcada para 15 de março, Tancredo foi internado com um quadro inflamatório e dores abdominais. Morreria em 21 de abril.

Por razões bem mais políticas que jurídicas, um grupo de peemedebistas, entre eles o paulista Mário Covas (1930-2001) - o PSDB seria criado apenas três anos depois -, acreditava que o cargo deveria ser entregue ao presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães (1916-1992).

Seria a alternativa correta, caso Sarney fosse "o vice de Tancredo". Não era. Ele era bem mais que isso, era o "vice da República". Sarney tomou posse e cumpriu integralmente o mandato presidencial.

Mário Covas foi no episódio um personagem importante. Era na época prefeito indicado de São Paulo (ainda não se havia reinstituído a eleição direta para as capitais) e se tornaria no ano seguinte o senador mais votado na história republicana.

Quem narrou em pormenores a furtiva certeza de Covas quanto à posse de Ulysses no Planalto foi seu antigo amigo, o advogado Saulo Ramos (1929-2013).

PREFEITURA DE SANTOS

Em sua autobiografia "Código da Vida" (2007), Ramos, depois ministro da Justiça de Sarney, conta o que aconteceu nas eleições municipais de Santos (SP), em 1961.

Dois nomes fortes disputavam a sucessão do prefeito Silvio Fernandes Lopes, nos anos 50 um dos filhotes políticos de Adhemar de Barros na Baixada Santista.

O primeiro candidato era o jovem Mário Covas, engenheiro da Prefeitura e candidato apoiado pelo então presidente da República, Jânio Quadros. O segundo, o ademarista Luiz La Scala.

A votação em turno único aconteceu em 24 de abril. Ganhou La Scala, e Covas amargaria sua primeira e única derrota eleitoral. Mas eis que La Scala morre antes de tomar posse e surge um rápido embate entre Covas, que queria a Prefeitura para si, e José Gomes, que era o vice da chapa ademarista.

Saulo Ramos convenceu Covas de que ele não tinha direito ao cargo de prefeito. Argumentou que Gomes havia sido eleito vice-prefeito de Santos, e não vice de La Scala. Ou seja, a lealdade dele era para com o município e não para com o finado prefeito eleito.

Não era para Saulo Ramos uma simples opinião pessoal. Ele se baseava em decisões do STF e em todo um conjunto de sentenças da Justiça Eleitoral. A doutrina do Direito estava de um lado só. 

O princípio seria aplicado meses depois a João Goulart, que assumiu o Planalto como vice de Jânio Quadros, e em 1992, com Itamar Franco, depois do impeachment de Fernando Collor de Mello.

Nenhum deles tinha com o presidente uma relação subalterna de obediência. Haviam sido eleitos e diplomados pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

É por isso que o discurso da suposta traição de Temer não faz sentido. Pela lei, ele não tinha uma relação subalterna e de obediência a Dilma e não poderia, em nenhuma circunstância, ser por ela demitido, como ocorre com os ministros do Executivo que exercem cargos de confiança.

Em meados de abril de 2016, quando as condições políticas de Dilma Rousseff se tornaram insustentáveis, ela com frequência passou a qualificar Michel Temer de "traidor", porque ele, discretamente, negociava a formação do governo interino.

Mas o vice-presidente não é um mordomo. Temer já era o vice-presidente da República e não o vice da hoje presidente afastada. Em situação análoga à de Sarney, em 1985, e a do vice José Gomes, na Prefeitura de Santos, em 1961.

 

FOTO: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO CONTEÚDO

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