Eva, da bíblia ao banco dos réus

Juiz declara lei contra violência doméstica inconstitucional. E cita Adão e Eva como justificativa

Ivone Zeger
12/Mai/2015
Advogada, consultora jurídica, palestrante e escritora.
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Como você reagiria se alguém lhe dissesse que a mulher, vítima de violência doméstica, não merece a proteção garantida pela Lei nº 11.340 – popularmente conhecida como Lei Maria da Penha – porque é culpada pela desgraça humana, ao provocar a expulsão de Adão do paraíso?

Como você reagiria se alguém lhe dissesse que a mulher, vítima de violência doméstica, não merece a proteção garantida pela Lei nº 11.340 – popularmente conhecida como Lei Maria da Penha – porque é culpada pela desgraça humana, ao provocar a expulsão de Adão do paraíso?

E como reagiria se soubesse que essa argumentação foi usada por um juiz?

Pois é. Um juiz. De acordo com informações veiculadas pela imprensa, o juiz Edilson Rodrigues, de Sete Lagoas (MG), considerou a Lei Maria da Penha inconstitucional em várias sentenças por ele expedidas.

Em suas justificativas, além de recorrer ao já citado episódio bíblico, o magistrado afirma: “O mundo é masculino! A ideia que temos de Deus é masculina! Jesus foi homem” - mas teve mãe, acrescentaria eu.

Contudo, não é o caso de cairmos em discussões teológicas. O fato é que, desde a Proclamação da República, o Brasil é um estado laico. Sendo assim, não há qualquer base legal que justifique a expedição de sentenças calcadas em pretensas argumentações religiosas.

Uma sentença judicial, para quem não sabe, deve basear-se na lei em vigor.

E a lei, sancionada pelo presidente Lula em agosto de 2006 sob o número 11.340, garante mecanismos especiais de proteção às mulheres vítimas de agressões cometidas pelo marido ou qualquer relação íntima de afeto na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independente de coabitação.

Entre esses mecanismos está o aumento da pena do agressor, que agora vai de três meses a três anos de prisão – com aumento de um terço da pena se a agressão for cometida contra deficientes físicos.

É um avanço, se considerarmos que a cearense Maria da Penha, em cuja homenagem a lei foi batizada, tornou-se paraplégica após sofrer três tentativas de assassinato por parte do marido – que saiu da cadeia após cumprir apenas dois anos de reclusão.

Outro avanço trazido pela lei é a permissão para a abertura de processo em caráter de urgência. Anteriormente, o processo era encaminhado ao Juizado Especial e muitas vezes terminava com o agressor sendo condenado à terrível pena de ter de comprar algumas cestas básicas para sua vítima.

A lei Maria da Penha também possibilita a inclusão da mulher agredida em serviços de proteção, e permite ao juiz impor ao agressor restrições imediatas, como perda do porte de arma e a proibição de se aproximar da vítima ou dos filhos do casal.

Medidas como essas são mais do que bem-vindas num país no qual, de acordo com pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, a cada 15 segundos uma mulher é espancada por um homem – na maioria dos casos, por seu próprio marido ou companheiro.

Infelizmente, o juiz Rodrigues não está sozinho em sua cruzada contra o que, ao seu ver, constituem “privilégios” concedidos às filhas de Eva. Não faz muito tempo a 2ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul considerou, em decisão unânime, que a Lei Maria da Penha é inconstitucional.

Na opinião dos senhores juízes, a nova lei concede tratamento privilegiado às mulheres, ferindo o princípio da igualdade de direitos e deveres para ambos os sexos estabelecido pela Constituição.
 
Ora, quem fere o princípio de igualdade é o marido agressor, que se vale de sua força física, e muitas vezes também de seu poder econômico, para intimidar e ferir aquela a quem deveria considerar sua igual.

A Lei Maria da Penha é apenas uma tentativa de restabelecer algum equilíbrio nessa situação. Tentativa, por sinal, amparada pela Constituição, que diz, no parágrafo 8º do Artigo 226:

“O estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. ”
 
A sociedade deve ficar atenta para que decisões como essas não resultem em precedentes capazes de colocar por terra avanços obtidos a tão duras penas – que o diga Maria da Penha, que há mais de vinte anos vem lutando pelos direitos das vítimas da violência doméstica.

 

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