Eu vivi a transformação do comércio em São Paulo

A metrópole não assiste a uma disputa entre shoppings e comércio de rua. Cada um encontrou hoje seu ponto de equilíbrio

João Batista Natali
26/Jan/2016
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Eu vivi a transformação do comércio em São Paulo

 

Eu deveria ter 10 anos quando minha mãe me pegou um dia pelo braço para mostrar a novidade. O salão era imenso, pé direito alto e bem iluminado. Prateleiras enfileiradas de produtos formavam corredores pelos quais se passava empurrando uma grande cesta metálica com quatro rodinhas embaixo.

Foi por volta de 1958, no Supermercado Sirva-se – rede depois comprada pelo Pão de Açúcar – na rua da Consolação, quase esquina da alameda Santos. Não havia cheiro de alimentos, tudo estava embalado. O perfume era de desinfetante, e, para descontrair, música ambiente.

Se eu tivesse na época a capacidade de teorização, teria dito comigo mesmo que presenciava um ponto de flexão do darwinismo do comércio paulistano. A aparição do supermercado levaria de roldão armazéns de secos e molhados, açougues e quitandas.
Mas eu estaria equivocado. As grandes lojas não engoliram as lojas pequenas. É uma das lições do último meio século de São Paulo, que acaba de completar 462 anos.

Caso a concentração de produtos levasse o comércio a funcionar apenas com grandes estabelecimentos, teríamos assistido à aparição de imensas lojas de departamento em substituição a sapatarias, lojas de brinquedo, de armarinhos ou de roupas. 

Mas todas elas continuam firmes, enquanto o Mappin ou a Clipper hoje descansam no cemitério de modelos empresariais.

Eu não seria ingênuo e superficial de acreditar que me relaciono com a cidade por meio de minhas compras. Ela é também um conjunto complicado de bens culturais – bibliotecas, orquestras sinfônicas, cineclubes – que não passam pelo crivo do mercado. 

É inegável, no entanto, que São Paulo tem em boa parte a cara do comércio que construiu.

Peguei os tempos do armazém, onde se compravam ervilha, feijão e milho para pipoca dispostos em sacos de juta. Não se pagava à vista. Anotava-se numa caderneta, que ao fim do mês meu pai passava no armazém para pagar.

Peguei também o tempo em que o leite e o pão eram entregues no fim da madrugada, num compartimento ao lado da caixinha de correio. Uma vez por mês, o padeiro e o leiteiro passavam em horários mais decentes para cobrar a conta.

Hoje, para o café da manhã com ingredientes fresquinhos, precisamos andar de jejum até a padaria. Não há nisso evolução ou involução. É o modo pelo qual o comércio se organizou.

Aliás, a própria padaria permanece uma forma geografiamente desconcentrada de varejo. Não há uma padaria central em cada bairro, à qual os clientes precisariam pegar um ônibus para chegar.

Essa mesma descentralização é o melhor sintoma da sobrevivência do comércio de bairro, onde as lojas me fornecem calçados e camisas, temperos e linguiça defumada, canetas esferográficas e presentes de última hora.

Morei onze anos na França. Relacionei-me muito bem com o comércio de lá, porque prevalecia a mesma descentralização. O pequeno comerciante é designado como “artesão”, sobrevivência esquisita dos séculos em que a produção se organizava em corporações estanques.

Ao lado dos supermercados de tamanho em geral mais tímido que os brasileiros, sobrevivia o merceeiro, o padeiro ou o livreiro.

Um detalhe fundamental e curioso. Paris – minha outra cidade – proíbe a construção de shopping centers com estacionamento para automóveis. Sabe que ele tenderia a matar o comércio de rua.

O mesmo acontece em Buenos Aires ou Santiago do Chile, num perímetro bem delimitado ao redor do centro. E mesmo em Manhattan, Nova York, onde certa vez assisti ao patético drama de uma brasileira que só sabia fazer compras em shoppings e que foi aconselhada, no hotel, a tomar um trem e se deslocar até um distante subúrbio.

De certo modo, o comércio parisiense tem muito a ver com locais paulistanos em que as lojas de rua permanecem fundamentais, como a rua Teodoro Sampaio, em Pinheiros, ou a Voluntários da Pátria, em Santana. 

Há uma espécie de GPS parisiense que leva as pessoas a regiões de comércio temático. Instrumentos musicais perto da Gare Saint-Lazare, do mesmo modo em que por aqui, em São Paulo, o GPS indica a José Paulino para roupas, ou a 25 de Março para quase tudo o que é mais ou menos portátil.

Entre as ruas paulistanas, a Augusta perdeu seu antigo perfil a partir do final dos anos 60. Era o local das butiques, da alta moda, que emigraram para os shoppings. O darwinismo comercial foi bem mais explícito e violento.

Mas seria uma imensa bobagem acreditar que exista em São Paulo uma disputa entre dois modelos de comércio – o shopping e a loja de rua – da qual apenas uma sobreviverá. 

Sobreviverão as duas. Apesar da atual crise, ambas continuarão a crescer pela simples razão de que há, nos segmentos mais pobres dos paulistanos, muita inclusão ao mercado a ser ainda feita.

 

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