Entre desafios locais e oportunidades globais
‘Durante anos, uma explicação para a relutância em internacionalizar emergiu: era mais lucrativo especular no mercado cambial... Essa estratégia funcionou até a crise bancária americana provocar forte desvalorização do real’

A indústria de papel no Brasil enfrenta um dilema complexo que revela tensões entre eficiência econômica e impacto social. O setor, reconhecido mundialmente por sua expertise em silvicultura tropical, vive um paradoxo: sua própria lógica operacional gera consequências não intencionais nas comunidades onde se instala. Mais importante, essa dinâmica ilustra como empresas brasileiras frequentemente desperdiçam oportunidades de crescimento global por se acomodarem em mercados domésticos conhecidos - um padrão que se repete em diversos setores da economia nacional e que ajuda a explicar por que tantas indústrias brasileiras permanecem na periferia das cadeias globais de valor.
A equação é aparentemente simples: como o transporte de toras representa custos significativos, as plantações precisam ficar próximas às fábricas. Essa necessidade logística, porém, desencadeia transformações profundas no tecido social rural. As monoculturas de eucalipto gradualmente substituem atividades agrícolas diversificadas, alterando a dinâmica econômica local.
O resultado é um fenômeno migratório interno: trabalhadores rurais, cujas habilidades tradicionais não encontram mais espaço na nova realidade, migram para núcleos urbanos próximos. Esses povoados, despreparados para absorver o influxo populacional, enfrentam pressões crescentes por habitação e serviços públicos. Os orçamentos municipais, frequentemente limitados, não conseguem acompanhar a demanda, criando tensões entre as empresas e as comunidades.
Diante dessa realidade, surge uma questão estratégica: por que não expandir para mercados com maior potencial de crescimento e menor impacto social? A Ásia, especialmente, apresenta um consumo crescente de papel impulsionado pelo desenvolvimento econômico. China, Vietnã e outros países da região poderiam oferecer oportunidades de expansão sem os dilemas sociais brasileiros.
Quando confrontados com essa possibilidade, alguns executivos do setor demonstram ceticismo. "São corruptos demais", argumentou um dirigente papeleiro sobre investimentos na China. O comentário revela uma percepção interessante, considerando que empresas finlandesas, vindas de um país conhecido pela transparência, investem há décadas no Brasil sem maiores constrangimentos éticos.
A autoconfiança tecnológica também influencia essas decisões. "Somos donos de uma tecnologia de gestão de florestas melhor do que a dos outros", observam orgulhosamente. Essa vantagem competitiva, construída ao longo de décadas, é real e reconhecida internacionalmente. Contudo, a história recente da indústria calçadista de Franca oferece uma lição relevante: os chineses absorveram técnicas brasileiras e hoje produzem sapatos mais competitivos. Vantagens tecnológicas, sem estratégias de proteção adequadas, podem ser temporárias.
Durante anos, uma explicação adicional para a relutância em internacionalizar emergiu: era mais lucrativo especular no mercado cambial. Muitas empresas mantinham exposições ao dólar superiores às necessidades operacionais, aproveitando-se da volatilidade monetária brasileira. Por que investir em mercados distantes quando os lucros financeiros eram mais acessíveis?
Essa estratégia funcionou até a crise bancária americana provocar forte desvalorização do real. Executivos que antes rejeitavam mercados internacionais por questões de governança viram suas empresas enfrentarem perdas significativas nas operações cambiais. Alguns perderam posições, e o setor como um todo foi forçado a repensar suas estratégias.
Enquanto isso, outros países avançaram. Produtores vietnamitas, tailandeses e malaios expandiram capacidades nos mercados asiáticos que o Brasil hesitou em explorar. Nossa indústria permanece geograficamente concentrada, enfrentando os mesmos dilemas sociais de sempre.
O episódio ilustra um padrão que transcende o setor papeleiro: a tensão entre lucros imediatos e investimentos estratégicos de longo prazo. Não se trata de uma falha moral, mas de perspectivas umbilicais que, por vezes, distorcem decisões empresariais.
A indústria papeleira brasileira possui capacidades técnicas reconhecidas mundialmente e recursos naturais abundantes. O desafio está em transformar essas vantagens em estratégias que conciliem crescimento empresarial, desenvolvimento social e presença global mais efetiva. As oportunidades continuam abertas, aguardando uma visão mais ampla e de longo prazo.
**As opiniões expressas em artigos são de exclusiva responsabilidade dos autores e não coincidem, necessariamente, com as do Diário do Comércio
IMAGEM: Freepik